domingo, 7 de abril de 2013

UM NOME PARA ESTA COISA QUE NÃO HÁ [Cântico aos Ausentes] (Dércio Braúna)


Crash! - Umberto Salvagnin




I.

Mesmo quando não,
há um canto no fundo da garganta.

Mesmo quando não,
    nesse duro ato de existirmos
    a brandura dos gestos que esquecemos.


II.

Mesmo quando não,
viver é contundente.


III.

Por isso não se cala um incêndio:
este de fabrico primevo
a que guardamos lá onde somos,
a crepitar no fundo das carnes
uma voz, um chamamento,
um nome para esta coisa que não há
(nem nunca há de haver) –

Deus é um bonito sonho infeliz.


IV.

Mesmo quando não há,
meu canto se urde
dessa ordinária, teimada felicidade
                                        das criaturas
(seu duro haver contra a ordem das coisas).


V.
Mesmo quando não há,
meu deus é um gesto de chegar ao perto
dessas gentes que se vão
                                       e eu não sei.

“O que não posso dizer, sou eu.”*


[* ADRIENNE RICH, Uma paciência selvagem, p. 225]




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Dércio Braúna [editor de Kaya] - é poeta, contista, historiador; autor de O pensador do jardim dos ossosA selvagem língua do coração das coisasMetal sem húmusComo um cão que sonha a noite sóUma nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto


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