segunda-feira, 8 de junho de 2015

PATRÃO [NOÉMIA DE SOUSA]


Engrenagem de máquina



Patrão, patrão, oh meu patrão!
Porque me bates sempre, sem dó,
com teus olhos duros e hostis,
com tuas palavras que ferem como setas
com todo o teu ar de desprezo motejador
por meus actos forçadamente servis,
e até com a bofetada humilhante na tua mão?


Oh, mas porquê, patrão? Diz-me só:
que mal te fiz?
(Será o ter eu nascido assim com esta cor?)


[...]

Ah patrão, eu levantei
esta terra mestiça de Moçambique
com a força do meu amor,
com o suor de meu sacrifício,
com os músculos da minha vontade!
Eu levantei-a, patrão
pedra por pedra, casa por casa,
árvore por árvore, cidade por cidade,
com alegria e com dor!
Eu a levantei!


E se o teu cérebro não me acredita,
pergunta à tua casa quem fez cada bloco seu,
quem subiu aos andaimes,
quem agora limpa e a põe tão bonita,
quem a esfrega e a varre e a encerra …
[...]
Pergunta quem morre no cais
todos os dias – todos os dias -,
para voltar a ressuscitar numa canção …
E quem é escravo nas plantações de sisal
e de algodão,
por esse Moçambique além …
O sisal e o algodão que hão-de ser “pondos” para ti
e não para mim, meu patrão …
E o suor é meu,
a dor é minha,
o sacrifício é meu,
a terra é minha
e meu também é o céu!

E tu bates-me, patrão meu!
bates-me …
E o sangue alastra, e há-de ser mar...
Patrão, cuidado,
que um mar de sangue pode afogar
tudo … até a ti, meu patrão!
Até a ti …




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Referência dos textos: SAÚTE, Nelson (Org.). Nunca mais é sábado: antologia de poesia moçambicana. Lisboa: Dom Quixote, 2004.

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Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu na Catembe, Maputo, em 20 de setembro de 1926. Foi jornalista da agência LUSA em Portugal, país onde faleceu a 04 de dezembro de 2002. O seu livro Sangue Negro, reunindo sua obra, dispersa em jornais e revistas, foi editado em 2011. É um dos nomes fundadores da poesia da moçambicanidade.


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