Close-up view of wing of Citrus swallowtail - Muhammad Mahdi Karim |
"E continuou a batida, confiado tão-só na
inspiração
do momento, porquanto o baralho fora
rebalharado e
agora tinham ambos outros naipes a
jogar."
Guimarães Rosa (In Sagarana, do conto 'Duelo')
Eu já havia atravessado o riacho quando ouvi o bater de cascos nas pedras do caminho bem atrás de mim; diminuí a marcha da charrete com puxadas leves e alternadas nas rédeas, levando os animais para a margem direita da estrada, fazendo com que as rodas fizessem menos barulho em contato com a areia frouxa na beira do mato, também para dar passagem a quem porventura viesse na retaguarda — pois não me agradava saber que rastejava alguém às minhas costas naquela via totalmente deserta, a muitos quilômetros do vilarejo.
(Meu pai havia se separado de minha mãe um pouco antes do meu
nascimento, algumas línguas maldosas diziam entredentes ter sido um típico caso
de infidelidade, mas nunca se confirmou a versão, apesar de ela ter atravessado
décadas antes de chegar aos meus ouvidos por intermédio de uma tia que passou a
tomar conta de mim desde o nascimento, pois meu pai conviveu pouco comigo,
visto que saiu pelo meio do mundo atrás de um tio tido pelas más línguas como o
causador da triste separação. Nunca voltaram de tal impreitada, nunca se soube
quem venceu a contenda: se a honra foi finalmente lavada ou se se perpetuou
para sempre a injustiça; nenhum dos dois voltou para contar a história.)
O caminho era ladeado por vasta vegetação, e tinha trechos em
que praticamente o sol desaparecia atrás das copas das árvores, deixando passar
muito raramente um filete de luz — que naquela escuridão em plena tarde mais se
assemelhava a uma tocha acesa —; ainda faltava uma boa légua e meia antes de
aparecerem as próximas matas fechadas, na beira de uma grota; mas a escuridão
talvez me alcançasse antes, que o sol despencava ligeiro, já brincando de se
esconder atrás dos galhos mais altos.
(A intriga entre a família parecia ter se cansado, se esgotado
em algumas décadas de ódios e mal-entendidos, e o que restava era uma
desconfiança entre os tios e primos e filhos dos primos, como se o ódio e a
desavença pudessem ser transmitidos pelo sangue, como se a versão subterrânea
que ciciava pelas alcovas pudesse ter envenenado as relações entre todos os
membros da família.)
Desde pequenino eu fazia aquele trajeto, primeiro na garupa de
meu pai, que ia a viagem inteira me contando histórias acontecidas naquela
estrada, histórias antigas de crime e mistérios, de loucos que corriam em sua
frente e desapareciam para ressurgirem bem atrás, assombrando os animais:
quando os relatos atingiam o desfecho eu apertava com força a cintura de meu
pai, e não raras vezes urinei no calção em meio a um susto maior; na mocidade
enfrentei pela primeira vez o percurso sozinho, e nunca esquecerei essa
primeira viagem desacompanhado — principalmente quando desembestei estrada
afora assustado com um anum que passou por cima de minha cabeça em vôo rasante.
Depois, não... me acostumei ao caminho e já havia esquecido os receios da
mocidade.
(Durante a minha adolescência passei a conviver mais com os
primos, a estudar no mesmo e único colégio, a freqüentar as mesmas festas, a
namorar as mesmíssimas vizinhas, esquecidos dos pais desaparecidos: como se
aquele caso que maculara a nossa história familiar pudesse ser facilmente
esquecido.)
Mas desta vez tive que sair no meio da tarde e não chegaria de
dia nem que meu cavalo tivesse asas. Em casa, tentaram me persuadir a deixar a
viagem para a manhã seguinte. Teimei em ir e fui... e pensava exatamente nisso
quando ouvi o tropel de cascos atrás de mim. Achei estranho, pois somente em
duas raríssimas ocasiões encontrei alguém naquela vereda... e nunca atrás de
mim, porém se anunciava longe em minha frente e eu ia deduzindo aos poucos quem
era antes de cruzar comigo. Desta vez tudo acontecia diferente, sendo a hora
bastante imprópria... já quase noite, o cavaleiro se deslocava devagarinho na
retaguarda. Maneirei, como havia dito, o passo de minha carroça o mais que
pude, e nada de aparecer alguém. Comecei então a desconfiar de que ele esperava
a noite; e de nada adiantava apressar o passo, pois fatalmente me alcançaria
nas oiticicas da grota... e eu preferia encontrá-lo em campo aberto e ainda
claro.
(Já ficando adulto pude confirmar que as feridas familiares
estavam longe de serem cicatrizadas, e que aquela névoa espessa que às vezes
nos dificultavam a visão era facilmente afastada, bastando que alguém movesse
com pouco cuidado os cordões que sustinham as marionetes desengonçadas que as
tias moviam com um pouco de talento.)
Todas as histórias de meu pai vieram à minha mente como um
redemoinho, e sem ordens se misturavam a acontecimentos recentes; ao mesmo
tempo em que me lembrava de assombrações, recordava crimes horrendos, vinganças
terríveis que ocorreram em seu trajeto. Arrependi-me sem mais jeito a dar, que
teria de seguir caminho, pois passara há muito tempo da metade do percurso, e
uma questão de terra me esperava sem falta em uma de nossas fazendas, antes que
um crime se desse entre o morador da fazenda e um vizinho, velho inimigo; uma
encrenca antiga que agora parecia ter chegado a uma situação limite. Talvez por
isso eu vinha armado, contrariando um costume de paz que me acompanhava desde a
infância, mas a gravidade da ocasião (assim como o adiantado da hora) fez com que
eu tomasse minhas providências, e escondi o revólver na lua da cela para o caso
de uma necessidade urgente.
(Como se a vingança pudesse também ser genética, o acaso me
colocou numa situação de me apaixonar pela noiva de um primo; e, como se
quisesse o destino brincar de esconde-esconde, botou nos lábios da moça um meio
sorriso. O que para nós seria apenas um caso de paixão adolescente ganhou uma
gravidade exagerada no círculo familiar, exigindo desculpas entre as mães e
desconfortos entre os primos.)
Aproximava-me das moitas quando tive a idéia de me esconder para
aguardar meu seguidor; meti a charrete na lateral da estrada entre uns arbustos
e apurei o ouvido: os passos se tornaram mais fortes, como se meu “perseguidor”
estivesse calculando que eu ia me aproximar do riacho; com uns cem metros eu
distingui o cavaleiro curvado na cela, como que incrédulo por não estar me
avistando; de repente surgi à sua frente a menos de dois metros. Com surpresa
deparei com meu primo Isaías, que quase caiu do cavalo e não encontrava
palavras para se explicar, para onde ia, o que ia fazer àquela hora.
(O noivado fora desfeito, e os boatos diziam de uma noiva
distante; e estas notícias chegavam aos meus ouvidos com malícia. As tias,
temerosas de uma repetição de destinos, caprichavam nas rezas.)
O seu nervosismo, em vez de também me atormentar, me deixou mais
calmo. E eu mesmo me surpreendi com minha repentina frieza, pois fiquei
completamente dono da situação. Observava-o de frente, com o cenho franzino,
enquanto ele titubeava nas explicações, mastigando as frases sem nexo. Mesmo
estando senhor da situação, tive receios: havíamos tido encrencas na infância,
brigas feias... mas que o tempo parecia ter apagado para sempre. Coisa de que
eu não tinha mais tanta certeza agora. No dia anterior andei comentando sobre a
viagem, mais para ver quem me acompanharia na difícil missão; todos mudavam de
assunto, ou mesmo tentavam me convencer a não ir. Ele havia calado, os
olhos fixos no infinito — no mesmo dia andou espalhando aos quatro ventos que
faria visita a uma namorada em um vilarejo distante e em direção oposta à
minha: fez questão de comentar com todos.
(Mas o tempo foi mestre no acalmar dos ânimos: as bonecos firmes
nos barbantes. O medo do passado consertou o presente.)
Agora me aparecia na estrada, de maneira suspeita, assustado...
e minha cabeça remexia as hipóteses mais absurdas e fantasiosas: ele havia
divulgado sua viagem para que nunca lhe fosse jogada nenhuma responsabilidade
se algo me ocorresse, também para justificar sua ausência da cidade exatamente
no dia de minha partida — pegara o caminho anunciado fazendo questão de ser
visto por todos, e bem distante mudou de trajeto, arrodeando a cidade e
seguindo em meu encalço... Um plano perfeito; ao mesmo tempo me vinham as
recordações dos últimos anos de camaradagem, das pescarias com os outros
primos, das brincadeiras até, tudo como se o passado tivesse sido sepultado
para sempre. Pensei também que ele resolvera me ajudar na questão das terras,
mas se isso fosse verd... ou será que mudara de opinião no caminho? Mas todas
as hipóteses se mostravam absurdas e contraditórias.
Trocamos algumas palavras vazias... ele recordava acontecimentos passados, eu
assentia com a cabeça, o pensamento bem longe, confuso, irremediavelmente
perdido, sem soluções... ele passava distante dos assuntos polêmicos. Imaginava
o primo arrependido das brigas de adolescência e confraternizando comigo na
resolução do problema das terras... depois o via como um traiçoeiro e frio
assassino: nesse instante deixava ele se adiantar um pouco e roçava com o dorso
da mão o cabo do revólver. Já nos aproximávamos da grota, e as oiticicas podiam
ser distinguidas ao longe; o poente tornara-se uma mancha vermelha, mas de uma
cor que se assemelhava ao sangue misturado com água... lembrava o córrego, as
sombras que não deixariam testemunhas, o álibi perfeito... a culpa que recairia
no vizinho inimigo. O primo divagava agora sobre a família... sua voz
misturava-se com a de meu pai me contando histórias, a garupa do animal; de
repente uma vontade grande de urinar, um aperto no pé da barriga... desviei
então a vista para o primo; ele ia se atrasando, ficara quase às minhas costas;
notei, ou imaginei, o volume em sua cintura, o cabo do punhal espetando a
calça... a vontade de urinar bem mais forte... desta vez não mais rocei o cabo
com o dorso da mão, mas agarrei-o com força e me aliviei da bexiga cheia ali
mesmo na cela.
(E nossas trajetorias pareciam destinadas a imitar o voô das
borboletas, suave e silencioso, mas com possibilidades de movimentos bruscos e
laterais:
Voltaria no dia seguinte, a questão das terras resolvida com
ganho de causa para o vizinho (apesar da surpresa de meu morador). Apenas
acompanhado dele, que coragem me faltou para enfrentar sozinho a estrada;
prometi-lhe alguns agrados para seu consolo (uma novilha de gado leiteiro e a
dispensa de alguns dízimos foram suficientes) e aproveitei, com uma desculpa
convincente, para arrodear por cima do morro, desviando em mais de cem metros
as oiticicas e sua penumbra.
: sabedor da lagarta que o esperava, se conseguisse escapar da
cruel rede do caçador.)
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PEDRO SALGUEIRO nasceu no
Ceará (Tamboril, 1964) tem publicados os livros de contos O peso do
morto (1995), O espantalho (1997), Brincar com
armas (2000) e Dos valores do inimigo (2005).
Participa das coletâneas Geração 90 (Org. Nélson de Oliveira)
e Os cem menores contos da literatura brasileira (Org.
Marcelino Freire), dentre outras. Recebeu o Prêmio Guimarães Rosa (Radio France
Internationale) e Prêmio de contos da Biblioteca Nacional para obras em curso
(Biblioteca Nacional/INL), dentre outros. Mantém o blog Movimento Esperado.