segunda-feira, 22 de junho de 2015

CADERNO DE VOO [Kaya nº II - junho/2015]



https://kayarevistaliteraria.blogspot.com/



Depois de sua nascença, Kaya (casa-lugar de escambo de sentires, de contaminações poéticas, de emaranhar de pensamentos) torna a ser habitada. Eis que alça voo ao vasto mundo seu número segundo.

Como sempre há de ser, povoa-lhe todos os cômodos, todas as janelas, todas as passagens a poesia, a Pensapoética que dizemos. Nesta segunda habitação, Kaya se faz povoar da palavra de seus habitadores-conceptores: Dércio Braúna e Webston Moura. A elas se juntam as escrevências de Iara Maria Carvalho, Nydia Bonetti, Lilia Tavares, W. J. Solha, Alves de Aquino, Antonio Fabiano, Nuno Gonçalves, Carlos Nóbrega, Luciano Bonfim, e Rouxinol de Rinaré.

Também povoa Kaya o narrar de Dércio Braúna, Luciano Bonfim, Tatiana Alves e crônicas de Tânia Du Bois.

Voragens (a outras escrevências e poéticas) também se dependuram a suas paredes, espelham-se por seus espaços pela mão de seus habitadores-conceptores: Dércio Braúna (Gonçalo M. Tavares e Herberto Helder) e Webston Moura (Nilto Maciel, Tania Du Bois, José Saramago).

Também nesta Kaya se avistam Pensatempos (sobre lugares, escritas e identidades; sobre leituras e artes) nas reflexões de seus editores.

Outra visitação desta habitação de Kaya, para uma boa conversa, é o professor Francijési Firmino e seu olhar para a obra de José Alcides Pinto.

A dar beleza aos olhos de quem lhe adentre, Kaya traz, em Iluminuras [um olhar comovido], as imaginografias (imaginopoéticas) dos artistas Carlus Campos (Brasil), Lena Gal (Portugal) e Edite Melo (Portugal).

Resta aqui, por fim, senão o redizer (tão descarecido que é) de que as portas de Kaya estão abertas. Entrem; façam nela habitação, partilhem essa morada de poesia e pensamento.

Sejam todos bem vindos!

Os Editores

DESENCANTO [Tatiana Alves]


Advection fog at the Golden Gate Bridge,
San Francisco - Grombo



Essa história de Príncipe Encantado vem me cansando ultimamente. Não que eu não goste de ser viril, corajoso, íntegro e belo. Nada disso. Mas perdi as contas das princesas igualmente encantadas que conheci, e que me decepcionaram logo após a promessa do viveram felizes para sempre. A separação, nem sempre amigável, ocorria após um brevíssimo período de convivência. Antes que me chamem de exigente, vamos aos fatos.

A primeira que me encantou foi a chamada Bela Adormecida. Achei magnífica a ideia de ela adormecer, na flor da juventude, e me aguardar até o momento em que eu decidisse me aventurar à sua procura. Nunca imaginei, entretanto, que ela quisesse continuar a dormir. Quando eu a tentava despertar para celebrar nosso casamento de conto de fadas, o seu mau humor era insuportável! E o mau-hálito, então? Acordava toda amassada, estava sempre morrendo de sono e tinha sempre uma desculpa para não ir aos bailes do reino comigo. Desisti.

Em busca de uma mulher mais ativa e dinâmica, encontrei Cinderela! Acostumada ao serviço pesado, julguei que daria conta de toda a limpeza do meu palácio. Depois de jogar na minha cara tudo o que enfrentou para ir ao baile, ainda vivia cercada de ratos, seus únicos amigos, segundo ela. Resquícios da pobreza, talvez. O que mais eu podia fazer? O golpe fatal, entretanto, veio quando ela, numa briga, atirou o sapatinho de cristal no meu rosto. Até hoje tenho a cicatriz. Voltou para o borralho!

Um dia, passeando no bosque, avistei Branca de Neve. Uma das mais belas, tenho de reconhecer. Beleza, contudo, mantida graças a uma rigorosa dieta. A anoréxica queria saber de comer maçã!... E aqueles anõezinhos, sempre por perto, enchendo o saco com aquelas musiquinhas irritantes. Até peguei uma gripe de um que espirrava o tempo todo.

Tomei uma decisão: me casaria novamente se encontrasse uma princesa bela, prendada e... Sem amigos ou família. Foi assim que Rapunzel entrou na minha vida. Morava sozinha numa torre. Casa própria. Independente. Perfeita. O único senão era ter de subir por aqueles cabelos. Em outros momentos, porém, eles eram extremamente convenientes. Em nossas tórridas noites de amor, fizemos verdadeiros malabarismos com aquela cabeleira. Quando a trouxe para o castelo, tudo mudou. Uma vez, reclamei do tempo que ela perdia lavando, secando e trançando aquelas madeixas. Sabem o que ela fez? Cortou tudo. Quase não a reconheci, ao voltar de uma caçada. Descobri que amava os cabelos, não ela.

Desde então, sou um celibatário convicto, totalmente cético em relação ao amor e à vida de conto de fadas. Nunca mais quero olhar... Espera... Quem é aquela deusa linda passando ali? Ei, princesa! Posso falar com você?


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* FANTASMAS [Tatiana Alves]
* ROTINA [Tatiana Alves]



Tatiana Alves vive no Rio de Janeiro, cidade onde nasceu. É doutora em Letras e leciona Literatura. Recebeu mais de 350 premiações em concursos literários e participou de cerca de 300 coletâneas. É autora das obras: O legado de Cronos [contos, 2005]; D’Além mar: estudos de literatura portuguesa [crítica literário, 2008]; Harpoesia [poesia, 2009]; Silulacrum [contos, 2010]; Festim [contos, 2011]; Além do arco-íris [infantil, 2011]; Sem fantasia [crônicas, 2012].



FANTASMAS [Tatiana Alves]


Folha seca – Ernani Kern


A quem causa mais dano a perda de alguém? Seria a saudade um lenitivo ou uma tortura? Quem não teve tempo suficiente para conviver com alguém que partiu perde, pelo fato de não ter lembranças a que recorrer, ou ganha, por não ter de lidar com a dolorosa face da saudade?

Felizes os que têm a lembrança, dirão aqueles para quem as fotografias não passam de imagens estáticas daqueles que um dia se moveram. Não interpelam retratos em busca de respostas que jamais chegarão.

Felizes os que são livres da saudade, replicarão decerto aqueles para quem as imagens possuem o mesmo perfume, o mesmo sabor, os mesmos sons do momento em que foram produzidas e eternizadas. Aprisionadas em porta-retratos, são criaturas enjauladas que jamais enxergarão a luz da liberdade. Vagam, por entre molduras, refletindo a incongruência entre o instantâneo e a eternidade.

Felizes, talvez, sejam estes que são objeto de saudade. Por objetos serem, dependem da transitividade que lhes seja concedida. São amados, odiados, lembrados. Tristes são os sujeitos que os evocam. Tornam-se simples, às vezes ocultos, indeterminados, até, mas sempre em busca de um predicativo que lhes razão ao sentir.


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# LEIA TAMBÉM:
* ROTINA [Tatiana Alves]


Tatiana Alves vive no Rio de Janeiro, cidade onde nasceu. É doutora em Letras e leciona Literatura. Recebeu mais de 350 premiações em concursos literários e participou de cerca de 300 coletâneas. É autora das obras: O legado de Cronos [contos, 2005]; D’Além mar: estudos de literatura portuguesa [crítica literário, 2008]; Harpoesia [poesia, 2009]; Silulacrum [contos, 2010]; Festim [contos, 2011]; Além do arco-íris [infantil, 2011]; Sem fantasia [crônicas, 2012].

ROTINA [Tatiana Alves]



Relógio [Google Images]

Acordar. Descobrir-se gorda, sintoma da retenção de líquidos típica do período pré-menstrual. Lidar com o ciúme dos cães, que se engalfinham pelo privilégio de serem os primeiros a saudá-la. Definir o dia. Correr ao salão. Fazer escova, e mão. Agendar o táxi, que se atrasa. Aturar reunião enfadonha. Trabalhar. Perder tempo. Lascar a unha recém-feita ao abrir o trinco do banheiro. Chorar de ódio quando a chuva desmancha o liso dos cabelos, devolvendo-lhe os cachos rebeldes. Olhar a agenda do filho pré-adolescente. Assinar a advertência e descobrir que deve comparecer ao colégio no dia seguinte. Oscilar entre castigo e compaixão. Titubear. Canduras de mãe a clamar. Convencer o bebê a ingerir o remédio. Forçar, se necessário. Sentir a dor que o pequeno, de manha, nem sente. Finalizar burocracias. Responder. Pagar. Registrar. Brigar com o ex ao telefone. Brigar com o atual, por não ter brigado tanto quanto deveria com o ex. Tentar se acalmar. Tomar banho, momento de paz. Vigiar os cachorros, que tentam entrar. Arrumar as coisas do dia. Pensar em tudo. Por tudo zelar. Babar pelos filhos que dormem. Regar as plantas. Jamais esmorecer. Beijar o marido. Conversar. Passar o dia em revista. E constatar, resignada, que mulher tem vários leões por matar.


Tatiana Alves vive no Rio de Janeiro, cidade onde nasceu. É doutora em Letras e leciona Literatura. Recebeu mais de 350 premiações em concursos literários e participou de cerca de 300 coletâneas. É autora das obras: O legado de Cronos [contos, 2005]; D’Além mar: estudos de literatura portuguesa [crítica literário, 2008]; Harpoesia [poesia, 2009]; Silulacrum [contos, 2010]; Festim [contos, 2011]; Além do arco-íris [infantil, 2011]; Sem fantasia [crônicas, 2012].


sábado, 20 de junho de 2015

[Encosto o ouvido às algas] (Lília Tavares)


Calvi/Córsega - Ziegler175


Encosto o ouvido às algas
e escuto os teus passos
na areia de contornos
verdes dos rumores das ondas.
Acelero a minha vida em espera,
abrando de dor o meu desejo.
para ti me envolvo, me perco,
para mim caminhas seguro,
quente, esperado.
Podem evadir-se as gaivotas.
Não vai estender-se aqui a manhã.


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Lília Tavares (1961)  é psicóloga clínica, há 24 anos a trabalhar na reabilitação de jovens e adultos. Casada e mãe de dois filhos, frestas de luz que a vida lhe deu. Unida à Poesia desde os treze anos, publicou em 1979 Fusão Crepuscular e outros Poemas em edição de autor. Participou, a convite, numa antologia de poetas do Baixo Alentejo, dois anos mais tarde. Natural de Sines, traz consigo o aroma das marés vivas de Setembro. De extremos, ama o aroma das terras, o sol, as alfazemas em Junho. Criadora e co-autora da Página "Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen", Lília é co-autora da Página "Poesia com Artes" e, neste âmbito, realiza  Encontros de Poesia e Artes em Oeiras. Tem criado eventos, prefaciado,  participado e/ou apresentado diversos livros de poesia de outros autores. Participou com outros onze autores em Rio de Doze Águas(Coisas de Ler, 2012), antologia prefaciada por Joaquim Pessoa. Publicou Parto com os Ventos (Kreamus, 2013), prefaciado por Carlos Eduardo Leal, RJ, e ilustrado com esculturas de arame de Simone Grecco, SP. Ama as pequenas coisas. Prende o olhar numa lágrima, num amigo, numa estrela.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

NÓS, ILHAS DESCONHECIDAS [Webston Moura]


O CONTO DA ILHA DESCONHECIDA
(Companhia das Letras)



O que (e quem) somos senão ilhas desconhecidas? Caso nos atenhamos a apenas a algum óbvio, o de que, por exemplo, já sabemos ― a priori e em definitivo ― tudo sobre quem somos, imaginando-nos como seres estáticos e, quem sabe, rasos, jamais tomaremos a iniciativa que nos levará a navegar o nosso mistério. Cada um, ilha a ser buscada por si mesma, precisa, pois, tomar esta tarefa não como uma problema, mas como uma viagem, a sua inevitável e, se possível, boa viagem. Que seja realmente interessante, apesar dos pesares do mundo. Assim é que este livro de José Saramago me tocou. É uma metáfora esta estória. E, como acontece aos bons contadores de estórias, aqui ela tem alguns personagens, um homem que pede um barco a um rei, para que possa ir atrás de uma ilha desconhecida, uma mulher, a quem este homem acaba se ligando e o mais é o que o leitor há de descobrir, lendo página a página. Lembrou-me outro livro do Saramago, A Jangada de Pedra. Mas isto é assunto para outro post.

Serviço:
O CONTO DA ILHA DESCONHECIDA
José Saramago
Companhia das Letras

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NOTA:
* O exemplar que tenho é o da Editorial Caminho, presente de um gentil amigo escrevente de coisas sentintes. Mas, para facilitar ao leitor (brasileiro), expus a capa do editado pela Companhia das Letras.

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Webston Moura é o editor do blog Arcanos Grávidos, além de co-editor de Kaya [revista de atitudes literárias]. Cearense de Morada Nova, mora em Russas desde 1988. Por formação, é Tecnólogo de Frutos Tropicais. Poeta, é autor de Encontros Imprecisos: insinuações poéticas (Imprece, 2006). Com o poema "A pronúncia da minha língua pela tua flor" e o conto "A vida carpida entre os dentes" participou da revista PARA MAMÍFEROS (Fortaleza, Nº 3, Ano 3, 2011). Com o poema "Enquanto o muçambê delira a meus olhos" participou da Revista do Instituto Cultural do Oeste Potiguar - ICOP (Nº 16, setembro de 2012). Teve ainda poema publicado no projeto Trânsito de Leituras. Aprecia teatro, desenho, boa música, além de questões ligadas a temas como meio ambiente, sustentabilidade, dentre outros. Colaborou tecnicamente com o blog Literatura sem fronteiras.


quarta-feira, 17 de junho de 2015

DOSTOIÉ vs KI* [Luciano Bonfim]


Wrought nails 17 – Hubertl

Dostoié sempre acreditou que a origem de sua família fosse completamente russa. Dizia pertencer à estirpe dos velhos marechais, juízes e plenipotenciários de príncipes. Contudo, quando sentia alguma perturbação, vingava-se de todos cantando em voz alta as histórias que a família queria sepultadas. Contava que o seu tataravô juntou-se a ladrões de gado para aterrorizar campos e aldeias, chegando posteriormente a chefiá-los. Não esquecia de Marina, sua belíssima tia avó, acusada de matar o marido com o auxílio da irmã e do amante, enquanto seu pai legalizava um falso testamento da vítima. O avô, por sua vez, seria filho de uma criança de 12 anos e o alcoolismo sempre esteve presente na família.

Ki não tinha dúvidas de que a sua família descendia de camponeses, comerciantes, artesãos e religiosos poloneses que abandonaram o campo para viverem em Moscou, por conta de suas características feudais, sacerdotais e familiares. Quando criança, em companhia de sua mãe, peregrinou até o mosteiro de Voznesensk, dirigido por seu parente Stefan que, apesar de leigo, compreendia com clareza os ensinamentos divinos. Nunca esqueceu a força com que sua mãe pediu para “que Deus a retire de uma Babilônia de pecados e a leve para o claro Sião, para ser admitida à adoração do Todo-poderoso”. Fortificou este sentimento ao vislumbrar a imagem da reunião dos santíssimos pais que repousam nas catacumbas da Laura de Kiev, e pelas palavras do capelão que afirmou que “Deus permite que os pagãos vençam os cristãos para que estes sejam punidos pelos seus pecados”.

Noutra ocasião, os dois irmãos choraram ao ouvirem a leitura do livro de Jó. Dostoié considerou que “Deus joga com o Diabo e caem sobre o justo desgraças imerecidas”. Ki, por sua vez, sentiu confirmar-se que “os príncipes, armados de luz, salvarão a terra”.

Como se fossem dois corpos que carregam uma única alma, aos sete anos começaram, simultaneamente, a ter crises de epilepsia. Neste mesmo período, ouviram atentamente, por várias e várias noites, a leitura da História do estado russo, de Karanzine. O próprio pai, em voz alta e exigindo atenção, realizava a leitura daquele livro apreciado pelo czar.

O pai carregava uma nostalgia permanente e por medo, insegurança ou vaidade, castigava a todos. Para Dostoié, a exemplo de Nicolau I, o pai se tornou um tirano. Ki achava que o pai representava uma espécie de amor patético e sentimental. A esposa permanecia obediente. Os criados sufocados. Os servos inconformados.

Depois da morte do pai pelos empregados, Ki e Dostoié começaram a sentir umas ideias.

Dostoié partiu para são Petersburgo, conheceu a resistência dos salões e as ideias liberais. Acreditou, desde cedo, que a vingança seria a cura para os seus pesadelos. Ki permaneceu em Moscou, para ele ainda familiar, aldeã e colorida – decidindo confiar nos desígnios de Deus e na leitura das vidas dos santos.

O primeiro, por não possuir coragem suficiente para morrer ou matar, começou a escrever romances e a criar personagens que executariam os seus crimes quase perfeitos. Envolveu-se em reuniões contra o czar, foi denunciado e amargou alguns anos de prisão. Neste período, entregou-se aos jogos de azar, chegando quase a perder o que restava de sua vida em uma partida de cartas.

O segundo aprimorou-se na leitura dos evangelhos e principiou a proclamar uma nova mística, onde a intuição se sobressairia sobre o conhecimento. Não foi entendido por seus contemporâneos e também acabou na prisão.

Dostoié, depois da prisão, passou a ser visto pelos bares e prostíbulos da cidade. As suas companhias viviam carregadas de humanidade e nestes lugares a dor de sentir o mundo e as suas inquietações são vividas de maneira intensa, dizia ele. Mantinha-se selvagem e ensimesmado.

Ki, durante o cárcere, se tornou bem mais velho que o irmão, apesar da mesma idade. Naquela época, com mais clareza e pujança, começou a pregar uma nova lei religiosa e moral sobre a lógica e a razão dominantes. Passando a expressar seus planos em contos e novelas, segundo ele, uma forma peculiar de preservar-se contra possíveis perseguições. Apesar da pretensa vida monástica, apaixonou-se por Kátia, amor de juventude de seu irmão, passando a sofrer com as tentações da carne.

Kátia escutou por duas vezes: DEUS SOU EU! Por duas vezes foi obrigada a adorar os autores de tal frase. Algumas vezes foi espancada, para ter confirmada a sua adoração. Quando ouviu pela décima vez: serei um homem extraordinário, e tenho um projeto: enlouquecer! Percebeu que os homens que ela conhecera em épocas diferentes, em cidades diferentes, cada um representava, a seu modo, a metade perdida do outro - cada um, sendo o próprio outro, tornava-se, ele próprio, um outro pela crença na possível afirmação de si mesmo e do outro que negava não ser.

Kátia gostava de Schiller, Dickens, Byron, Puchkin e Gogol. Dostoié não suportando conviver com aquela mulher que não mais conseguia fingir submissão, resolveu casar e ter filhos – conservou-se um sonhador. Ki, mesmo em seu isolamento, não conseguiu se livrar totalmente das ardentes lembranças das noites brancas nem do amargo sentimento de culpa.

Kátia, cansada dos salões de Moscou e são Petersburgo, fugiu para a Europa e se tornou dançarina em um café de Paris. Numa boate, quando esteve de férias em Turim, conheceu um professor alemão, nascido na Prússia, que se considerava polonês, chamado Friedrich Nietzsche. Para preservar a sua identidade, apresentou-se ao novo amigo com o nome de Salomé. Friedrich logo se lembrou de uma velha amizade e, prevendo refestelar-se naquela noite, gargalhou para dentro, como só ele sabia fazer. Conversaram o suficiente para não se aborrecerem um com o outro; em seguida foram para um quartinho de hotel nos arredores da cidade. Nietzsche, que até então não conhecia muito bem o martelar dos prazeres carnais, tresvariou, pelo menos, em grego, russo, francês e hebraico. Depois sentenciou: “tudo decisivo acontece apesar de tudo”.

Kátia, que ainda não sabia estar com sífilis, saiu antes de o pensador despertar; na pressa, esqueceu sobre a mesa um grande romance russo. Naquela manhã, além do treponema, o filósofo acordou com uma incontrolável vontade de potência apontada para o alto.



[*Parte integrante do livro: DISPERSÕES (no prelo)].



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LUCIANO BONFIM [1971] nasceu em Crateús-CE, é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Tem publicadas as obras: Janeiros sentimentos poéticos [poesia, 1992]; Beber água é tomar banho por dentro [poesia, 2006]; Dançando com sapatos que incomodam [contos, 2002]; Móbiles: hestórias e considerações [contos, 2007]; Aliterar versos 20/60 + alguns instantâneos [ficção/poética, 2013]. Escreveu e montou as peças: Auto do menino encantado [2002] e As mulheres cegas [2000]. Integra o grupo de teatro Permanência Provisória. Em 2010 foi selecionado pela Funarte (programa de criação literária) com o projeto Caminhos do Sol [livro e exposição fotográfica]. Tem no prelo os livros: Dispersões; As aventuras de Leôncio; e Caracol e outros poemas para crianças. [contatos: lucianogbonfim@gmail.com / http://permanenciaprovisoria.blogspot.com.br/].

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