Rust and dirt on a baking plate - Roger McLassus |
"Há um rio
enorme, precipícios sem
fundo ― e
seguro-me a ramos frágeis
para não cair
neles."
Graciliano
Ramos
O que restava do coronel Holanda era um velho remelento e de olhar distante, o dia todo sentado numa cadeira de balanço forrada por um coxim de retalhos. Às cinco da manhã já se encontrava ao pé do balcão de sua mercearia, com uma cerveja ao lado.
Num canto, uma ceroula amarelada jazia estendida sobre um candeeiro apagado, confirmando apenas o que o velho penico de ágata, transbordante de um líquido pastoso e de cheiro acre, segredava a quem desviasse os olhos para a penumbra atrás do balcão: o desmanchar lento e pautado de um velho quase todo desbotado pelo tempo.
Foi o mais
poderoso daquelas bandas, mandava na outra metade da população que não era
mandada pelo coronel Zé Jorge. Quase todas as casas da antiga vila foram
erguidas por ele. Sua mercearia hoje não tinha nada, apenas garrafas vazias,
latas enferrujadas ― fora mais sortida da região e vendia fiado a quem
aparecesse.
Tinha uma
esposa que nunca saía à rua, três raparigas fixas e mais de vinte esporádicas,
sem contar as mulheres dos moradores de suas terras e das de seus puxa-sacos
mais próximos. Dizem que mais de trinta eram filhos seus, registrados em nome
de outros.
Casara com uma
prima para que a riqueza da família não fosse dividida. De tal união nasceram
seis filhos loucos. Uns de jogar pedra na lua; outros até se intitulavam
grandes intelectuais, passando semanas inteiras trancados na sacristia da
igreja, lendo o que se encontrava para ler.
Tudo
envelheceu, novos coronéis sem bigodes e revólveres tomaram conta da cidade, a
mulher morreu, os filhos tresvariaram pelas estradas, e ele simplesmente esperava,
gastando o que de resto ainda sobrara de seu reinado. Do passado só guardava
dois antigos hábitos: tomar cerveja sentado em sua cadeira de balanço, vigiando
prateleiras vazias, passando o dia bêbado, praguejando alguns palavrões fora de
moda, cuspindo no chão e olhando o tempo a passar em sua porta. Outro hábito
era o de raparigar. Todas as terças-feiras mandava buscar, no povoado vizinho,
sua única rapariga viva e disponível. Quando o frentista chegava, levando a
visita para uma velha casa, vinha avisar o coronel. Este levantava-se com
dificuldade, pegava a bengala e vencia com lentidão os trinta metros que
separavam a mercearia da casa velha, levando quase meia hora em passos
incertos.
Todos
comentavam aquelas extravagâncias. Uns falavam, entre risos, que o coronel não
conseguia mais fazer nada; outros afirmavam, convictos, a virilidade eterna do
velho. Algumas mulheres católicas se benziam ao verem o coronel passar trôpego.
Até o dia em
que Manuelito, ao caçar passarinho por entre as árvores, quintais e muros,
resolveu ir olhar as arrumações do velho casal e não entendeu quando, pela
brecha da porta, viu a cena: a velha mulher sem roupa, deitada na cama; o
coronel sentado em ceroulas no beiço da cama, ambos a se desmanchar em prantos.
"Há muita
esperança, mas não para nós."
Fraz Kafka
* Conto extraído do livro O Peso do morto (1995).
* Leia também REBARALHO ou UM VOO DE BORBOLETA
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PEDRO SALGUEIRO nasceu no Ceará (Tamboril, 1964) tem
publicados os livros de contos O peso do morto (1995), O espantalho (1997),
Brincar com armas (2000) e Dos valores do inimigo (2005). Participa das
coletâneas Geração 90 (Org. Nélson de Oliveira) e Os cem menores contos da
literatura brasileira (Org. Marcelino Freire), dentre outras. Recebeu o Prêmio
Guimarães Rosa (Radio France Internationale) e Prêmio de contos da Biblioteca
Nacional para obras em curso (Biblioteca Nacional/INL), dentre outros. Mantém o blog Movimento Esperado.