quarta-feira, 3 de abril de 2013

SOLUÇO ANTIGO* (Pedro Salgueiro)




Rust and dirt on a baking plate - Roger McLassus



"Há um rio enorme, precipícios sem
fundo ― e seguro-me a ramos frágeis
para não cair neles."
Graciliano Ramos


O que restava do coronel Holanda era um velho remelento e de olhar distante, o dia todo sentado numa cadeira de balanço forrada por um coxim de retalhos. Às cinco da manhã já se encontrava ao pé do balcão de sua mercearia, com uma cerveja ao lado.

Num canto, uma ceroula amarelada jazia estendida sobre um candeeiro apagado, confirmando apenas o que o velho penico de ágata, transbordante de um líquido pastoso e de cheiro acre, segredava a quem desviasse os olhos para a penumbra atrás do balcão: o desmanchar lento e pautado de um velho quase todo desbotado pelo tempo.

Foi o mais poderoso daquelas bandas, mandava na outra metade da população que não era mandada pelo coronel Zé Jorge. Quase todas as casas da antiga vila foram erguidas por ele. Sua mercearia hoje não tinha nada, apenas garrafas vazias, latas enferrujadas ― fora mais sortida da região e vendia fiado a quem aparecesse.

Tinha uma esposa que nunca saía à rua, três raparigas fixas e mais de vinte esporádicas, sem contar as mulheres dos moradores de suas terras e das de seus puxa-sacos mais próximos. Dizem que mais de trinta eram filhos seus, registrados em nome de outros.

Casara com uma prima para que a riqueza da família não fosse dividida. De tal união nasceram seis filhos loucos. Uns de jogar pedra na lua; outros até se intitulavam grandes intelectuais, passando semanas inteiras trancados na sacristia da igreja, lendo o que se encontrava para ler.

Tudo envelheceu, novos coronéis sem bigodes e revólveres tomaram conta da cidade, a mulher morreu, os filhos tresvariaram pelas estradas, e ele simplesmente esperava, gastando o que de resto ainda sobrara de seu reinado. Do passado só guardava dois antigos hábitos: tomar cerveja sentado em sua cadeira de balanço, vigiando prateleiras vazias, passando o dia bêbado, praguejando alguns palavrões fora de moda, cuspindo no chão e olhando o tempo a passar em sua porta. Outro hábito era o de raparigar. Todas as terças-feiras mandava buscar, no povoado vizinho, sua única rapariga viva e disponível. Quando o frentista chegava, levando a visita para uma velha casa, vinha avisar o coronel. Este levantava-se com dificuldade, pegava a bengala e vencia com lentidão os trinta metros que separavam a mercearia da casa velha, levando quase meia hora em passos incertos.

Todos comentavam aquelas extravagâncias. Uns falavam, entre risos, que o coronel não conseguia mais fazer nada; outros afirmavam, convictos, a virilidade eterna do velho. Algumas mulheres católicas se benziam ao verem o coronel passar trôpego.

Até o dia em que Manuelito, ao caçar passarinho por entre as árvores, quintais e muros, resolveu ir olhar as arrumações do velho casal e não entendeu quando, pela brecha da porta, viu a cena: a velha mulher sem roupa, deitada na cama; o coronel sentado em ceroulas no beiço da cama, ambos a se desmanchar em prantos.

"Há muita esperança, mas não para nós."
Fraz Kafka




* Conto extraído do livro O Peso do morto (1995).
* Leia também REBARALHO ou UM VOO DE BORBOLETA
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PEDRO SALGUEIRO nasceu no Ceará (Tamboril, 1964) tem publicados os livros de contos O peso do morto (1995), O espantalho (1997), Brincar com armas (2000) e Dos valores do inimigo (2005). Participa das coletâneas Geração 90 (Org. Nélson de Oliveira) e Os cem menores contos da literatura brasileira (Org. Marcelino Freire), dentre outras. Recebeu o Prêmio Guimarães Rosa (Radio France Internationale) e Prêmio de contos da Biblioteca Nacional para obras em curso (Biblioteca Nacional/INL), dentre outros. Mantém o blog Movimento Esperado.



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