Como a
vida da gente muda da noite para o dia! Ainda ontem tudo ao meu redor parecia
sem vida, tudo monotonamente normal, quando me assaltou novamente a idéia de
remexer papéis velhos, um dos meus passatempos prediletos. Assim consigo também
trazer de volta o passado. Às vezes é uma foto, outras uma carta, outras ainda
uma poesia que rabisquei na adolescência. Mas desta vez não foi nada disso.
Encontrei uma novela. Datilografada, ilustrada, com capa e tudo. Como um livro
impresso. No fundo de uma gaveta, enrolada noutras folhas de papel. Retirei o
invólucro e fui me lembrando da história daquela história. Era uma novela
amorosa escrita por César e ilustrada por mim.
Datilografamos,
fizemos uma bonita capa, grampeamos as folhas. Nesse tempo vivíamos de sonhar.
Éramos estudantes do mesmo colégio, colegas de grêmio literário, de leituras,
discussões acaloradas. Líamos Dumas, Camilo, Herculano, Alencar.
César sonhava
com a glória literária. Ser membro da Academia, escritor de fama, ganhador do
Nobel. Já meu sonho se contentava com as migalhas da simples publicação. Eu não
tinha vocação literária, embora rabiscasse versos vez por outra. Aprazia-me
mesmo era desenhar. Daí a capa do futuro livro de César e algumas ilustrações
ao texto.
Iríamos
trabalhar juntos sempre: ele como escritor de novelas, eu como ilustrador de
seus livros. E nunca ele aceitaria outro ilustrador, nem eu ilustraria livro de
outro escritor. Pacto de sangue, de morte, de amizade eterna.
Planejamos
publicar a primeira novela. Cinqüenta mil exemplares na primeira edição. Ele
havia sonhado com cem mil, até que o convenci a ser mais modesto. Iríamos ficar
famosos da noite para o dia: ele como escritor, eu como ilustrador. Lidos e
vistos em todo o Brasil. E depois em todo o mundo.
Inclusive
na China. Falaríamos com Mao Tse-tung. A juventude chinesa precisava de ler
textos mais do coração e não só o livrinho vermelho.
Enviamos
cópias para algumas editoras. As respostas vieram desalentadoras: “livro pouco
comercial”, dizia uma; “muitas obras no prelo nos impedem de dar publicação à
sua novela”, esclarecia outra; “não estamos no momento publicando novelas”,
explicava uma terceira; “livro não aprovado pelo nosso Conselho de Leitores”,
resumia uma quarta. E outras do mesmo teor.
Algumas
editoras nem sequer deram resposta. Fizemos então novos planos maravilhosos.
Não iríamos precisar das editoras. Pouparíamos. Deixaríamos de fumar, beber,
merendar, ir ao cinema, etc. César iria trabalhar e depositaria a maior parte
do ordenado na caderneta. Meu pai não me deixava trabalhar, mas, em
compensação, eu exigiria mesada mais gorda. Dela tiraria apenas o suficiente
para os gastos mais necessários e depositaria o restante na poupança. Quando já
tivéssemos alguns milhões, mandaríamos publicar a novela numa gráfica qualquer.
Venderíamos os livros nas escolas, nos cinemas, nas ruas, lojas, repartições
públicas, nos bares. Viajaríamos pelo interior. Com o dinheiro da venda
mandaríamos publicar o segundo livro. Mas quando teríamos os milhões
suficientes para pagar a primeira impressão? A esta pergunta perdemos o
entusiasmo.
Concluídos
os estudos secundários, César deixou de estudar e arranjou emprego. Não para juntar
dinheiro, mas para sobreviver. Seu pai mergulhava cada vez mais na pobreza. E
não falamos mais na novela. Nossas relações pouco a pouco iam perdendo o calor,
nossos encontros se distanciando no tempo. E, quando nos víamos por acaso,
apenas nos cumprimentávamos.
Esqueci
logo os desenhos, as ilustrações, os sonhos. E fui estudar Direito.
Um ano
depois meu pai morreu. Estranhamente assassinado. Crime horrível – latrocínio.
Morto e roubado. Encontraram seu corpo numa valeta a poucos quilômetros do
centro da cidade. Um tiro no crânio. E o carro estacionado à margem da estrada.
Nenhum vestígio do assassino.
Meu pai
nunca teve inimigos, dava-se bem com todo mundo e quase toda a cidade o
conhecia. Nós, os filhos, estudávamos nos melhores colégios. Minha mãe o
adorava. A polícia ficou tonta. Não sabia a quem atribuir o crime. Nenhum
indício, nenhum suspeito.
No dia de
sua morte havia sacado uma grande soma em dinheiro ao banco, como sempre fazia.
E seus negócios ele mesmo os resolvia. Deixava o carro estacionado nas
proximidades do banco, levava uma pasta, um revólver e só. Não queria guarda-costas.
A polícia
concluiu finalmente que o assassino só podia ser um assaltante comum. Foram
então presos todos os ladrões e suspeitos de terem cometido crimes contra o
patrimônio. A nenhum deles, porém, foi possível imputar o latrocínio.
Folheei a
novela e por um bom tempo me deixei a cismar. Pensei no meu passado, em César,
e quase não consegui dormir. E decidi que hoje procuraria saber onde vivia
César. Queria recordar com ele todos os nossos sonhos, todos os nossos
sofrimentos, ele por ter tido suas ilusões tão duramente mortas, eu por ter
perdido meu pai de maneira tão bárbara e misteriosa. Como pudemos nos esquecer
tão depressa, apesar daquela amizade quase apaixonada que nutríamos um pelo
outro? Como somos fracos, débeis, inconstantes!
Onde,
porém, eu poderia encontrá-lo? Detrás de um balcão de loja? Na cozinha de um
restaurante? Ou teria conseguido realizar seus sonhos literários, pelo menos os
mais modestos? Ou teria ido embora para bem longe? Talvez até estivesse morto.
Não, não
adiantava fazer suposições. Mais fácil procurar seu nome na lista telefônica.
Se não estivesse tão mal, certamente teria um telefone. Tentei lembrar-me de
seu nome completo. Lamentei mais uma vez a fragilidade do coração humano. Como
pude esquecer tão facilmente o nome de meu melhor amigo? Ainda bem que a novela
se encontrava comigo, e, com toda certeza, nela estaria o nome inteiro, um
sobrenome pelo menos. Corri os olhos e li: César Augusto dos Reis, no alto da
capa.
Hoje
disquei o número e atendeu uma voz grossa e autoritária. “Quero falar com o
novelista César Augusto dos Reis”. A voz do outro lado se mostrou aborrecida:
“Não existe nenhum novelista aqui. Quer deixar de brincadeiras, meu senhor.”
Apresentei-me. Ele se fez de esquecido ou de fato não se lembrava mais de mim.
Depois se disse surpreso: “Não sabia que você ainda era gente”. Conversamos
mais. Quis saber de minha vida. “Sou advogado. E você?” Falou em barzinho,
dificuldades, “aturando esses bêbados dia e noite”. Pedi o endereço.
O barzinho
chama-se “Restaurant Carnivorous”, serve pratos da cozinha internacional,
recebe a fina-flor da sociedade e é irmão de outros dois e de um prédio de doze
andares.
César
mandou dizer por um moleque de recados que não podia receber ninguém. Em um
minuto deveria sair para compromisso inadiável. Não dei ouvidos ao recado e
entrei no escritório. E só saí de lá uma hora depois.
Falamos da
morte de meu pai, de comércio, de literatura e artes plásticas, do passado, de
nossos sonhos, mil coisas, tudo de forma desordenada, como se quiséssemos falar
todas as palavras ao mesmo tempo. Contou-me sua história: antes de adquirir o
primeiro barzinho, trabalhou como garçom, copeiro e cozinheiro. O barzinho
rendia alguma coisa, até se transformar num bar de verdade. O bar virou
restaurante. “Tudo porque sou muito controlado e trabalhador. Não ando
esbanjando dinheiro”.
Surpreendi-me
diante de tanta riqueza e fui para casa desconfiado não sei de quê. E todo o
passado voltou à tona, aos borbotões, feito vômito. Relembrei todas as nossas
conversas, todos os sonhos, todos os projetos, a novela, tudo. E me interroguei
com mil perguntas: por que César não publicou o livro, não virou o escritor que
desejava ser, se tem tanto dinheiro? E se havia dito numa de nossas últimas
conversas que nada o impediria de se transformar num grande homem, famoso,
reconhecido por todos! Como um barzinho podia ter se transformado num
restaurante daqueles em tão pouco tempo?
Não durou
muito aquele vômito e voltei ao restaurante. Da porta gritei: “César, você
matou o meu pai”. Ele quis explodir, gritar, correr, agredir. Apontei-lhe o
revólver e ele se rendeu.
* Conto
extraído de Contos Reunidos -
Vol. II, Editora Bestiário, 2010
* Leia
também OS MONSTRINHOS DE DOZE ANOS
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Nilto Maciel é natural de Baturité, Ceará, autor
de Itinerário (Contos, 1974), Tempos de Mula
Preta (Contos, 1981), A Guerra da Donzela (Novela,
1982), Punhalzinho Cravado de Ódio (contos, 1986), Estaca
Zero (Romance, 1987), Os Guerreiros de Monte-Mor (Romance,
1988), O Cabra que Virou Bode (Romance, 1991), As
insolentes Patas do Cão (Contos, 1991), dentre outros. Mantém o blog Literatura sem fronteiras