Toy train - Alan Levine |
“Tropeço no sol da
manhã
e mergulhou no azul
do outono.”
Poema “Azul”, de
Helana Kolody
À luz do
dia, algazarra de passarinhos. Lá fora, os dois benjamins, do alto da sua
secularidade, vigiavam a passagem dos primeiros tropeiros. O café com pão na
mesa, os olhos entreabertos e remelentos, ainda com saudade da rede no quarto.
— Você
precisa ir ao Mercado, Cecé. Traga um quilo de arroz, um de feijão, e veja se,
com o que restar, compra alguns ossos para o pirão do almoço.
O pequeno
garoto abriu a mão, amassou a nota velha, que sabia guardada no fundo da lata
de goiabada, na cristaleira da sala. A mãe fazia milagres com a divisão do
minguado cobre.
Engoliu o
último naco de pão, antes molhando-o na borra do fundo da xícara sem asas. E
correu, num desembestar, para a pedra da feira.
Um
amontoado de gente rivalizava com os pardais e os bichos. Meteu o corpo magro
por entre a multidão, e descobriu, no meio de todos, a novidade. Um cigano alto
e conversador, com seus panos e brincos dourados, a oferecer uma porção de
mercadorias. Tudo reluzente e colorido, diferente dos potes, lamparinas e chitas
mercadejados pelos bodegueiros de Licânia. Acocorou-se ao canto, e pôs-se a
beber a novidade, em goles curiosos. A única e suada cédula entre os dedos
apertados.
Quando o
trenzinho de lata surgiu na mão do homem-cigano, girando, majestoso, nos dedos
repletos de anéis, Alcebíades ficou de queixo caído. Esqueceu a encomenda do
almoço, e perguntou pelo preço. O cigano, de olhos claros, aproximou-se e, quase
num cochicho, declarou:
— Como
ainda é quase Natal, meu filho, a preciosa prenda, coisa das estranjas, fica
pra você por apenas dez pratas. Pra você, que eu já fui menino.
Alcebíades
conferiu a quantia, era exatamente a nota que levava. O cigano, macio, recolheu
o dinheiro, e pôs o brinquedo no colo do garoto.
Cecé
olhou para o alto, e deu com o céu ainda mais azul. Correu para casa, aos
pinotes, quase mudo de tanta emoção. Era-lhe tão grande a felicidade, que se
esqueceu do último degrau, o mais alto, na entrada da casa (artefato criado
pelo pai para conter a enchente do Acaraú), perdendo o equilíbrio:
esparramando-se de cara, peito e trenzinho no chão batido da saleta. Ao se
levantar, deu com os olhos solares da dona Marcolina, sua mãe. Esta nem precisou
lhe perguntar pelas compras: o azul de outono presente nas pupilas do filho,
apesar de lavado pelas lágrimas, já lhe dizia tudo.
* Leia também KAYA
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Antonio Clauder Arcanjo (Clauder Arcanjo), nascido em Santana do
Acaraú-CE, aos 3 de março de 1963, é engenheiro, professor, contista, poeta,
cronista, resenhista literário e colaborador de sites, revistas e jornais de
várias partes do País. A reunião de contos, intitulada Licânia, marcou a sua estreia em 2007. Lápis nas veias(minicontos) foi a segunda
obra, lançada em 2009. Novenário de espinhos é o seu primeiro livro de poemas. O autor tem obras inéditas nos gêneros:
crônica (Uma garça no asfalto), romance e resenhas literárias.