Wrought nails 17 – Hubertl |
Dostoié
sempre acreditou que a origem de sua família fosse completamente russa. Dizia
pertencer à estirpe dos velhos marechais, juízes e plenipotenciários de
príncipes. Contudo, quando sentia alguma perturbação, vingava-se de todos
cantando em voz alta as histórias que a família queria sepultadas. Contava que
o seu tataravô juntou-se a ladrões de gado para aterrorizar campos e aldeias,
chegando posteriormente a chefiá-los. Não esquecia de Marina, sua belíssima tia
avó, acusada de matar o marido com o auxílio da irmã e do amante, enquanto seu
pai legalizava um falso testamento da vítima. O avô, por sua vez, seria filho
de uma criança de 12 anos e o alcoolismo sempre esteve presente na família .
Ki não tinha
dúvidas de que a sua família descendia de camponeses, comerciantes, artesãos e
religiosos poloneses que abandonaram o campo para viverem em Moscou, por conta
de suas características feudais, sacerdotais e familiares. Quando criança, em
companhia de sua mãe, peregrinou até o mosteiro de Voznesensk, dirigido por seu
parente Stefan que, apesar de leigo, compreendia com clareza os ensinamentos
divinos. Nunca esqueceu a força com que sua mãe pediu para “que Deus a retire
de uma Babilônia de pecados e a leve para o claro Sião, para ser admitida à
adoração do Todo-poderoso”. Fortificou este sentimento ao vislumbrar a imagem
da reunião dos santíssimos pais que repousam nas catacumbas da Laura de Kiev, e
pelas palavras do capelão que afirmou que “Deus permite que os pagãos vençam os
cristãos para que estes sejam punidos pelos seus pecados”.
Noutra
ocasião, os dois irmãos choraram ao ouvirem a leitura do livro de Jó. Dostoié
considerou que “Deus joga com o Diabo e caem sobre o justo desgraças
imerecidas”. Ki, por sua vez, sentiu confirmar-se que “os príncipes, armados de
luz, salvarão a terra”.
Como se
fossem dois corpos que carregam uma única alma, aos sete anos começaram,
simultaneamente, a ter crises de epilepsia. Neste mesmo período, ouviram
atentamente, por várias e várias noites, a leitura da História do estado russo,
de Karanzine. O próprio pai, em voz alta e exigindo atenção, realizava a
leitura daquele livro apreciado pelo czar.
O pai
carregava uma nostalgia permanente e por medo, insegurança ou vaidade,
castigava a todos. Para Dostoié, a exemplo de Nicolau I, o pai se tornou um
tirano. Ki achava que o pai representava uma espécie de amor patético e
sentimental. A esposa permanecia obediente. Os criados sufocados. Os servos
inconformados.
Depois da
morte do pai pelos empregados, Ki e Dostoié começaram a sentir umas ideias.
Dostoié
partiu para são Petersburgo, conheceu a resistência dos salões e as ideias
liberais. Acreditou, desde cedo, que a vingança seria a cura para os seus
pesadelos. Ki permaneceu em Moscou, para ele ainda familiar, aldeã e colorida –
decidindo confiar nos desígnios de Deus e na leitura das vidas dos santos.
O primeiro,
por não possuir coragem suficiente para morrer ou matar, começou a escrever
romances e a criar personagens que executariam os seus crimes quase perfeitos.
Envolveu-se em reuniões contra o czar, foi denunciado e amargou alguns anos de
prisão. Neste período, entregou-se aos jogos de azar, chegando quase a perder o
que restava de sua vida em uma partida de cartas.
O segundo
aprimorou-se na leitura dos evangelhos e principiou a proclamar uma nova
mística, onde a intuição se sobressairia sobre o conhecimento. Não foi
entendido por seus contemporâneos e também acabou na prisão.
Dostoié,
depois da prisão, passou a ser visto pelos bares e prostíbulos da cidade. As
suas companhias viviam carregadas de humanidade e nestes lugares a dor de
sentir o mundo e as suas inquietações são vividas de maneira intensa, dizia
ele. Mantinha-se selvagem e ensimesmado.
Ki, durante
o cárcere, se tornou bem mais velho que o irmão, apesar da mesma idade. Naquela
época, com mais clareza e pujança, começou a pregar uma nova lei religiosa e
moral sobre a lógica e a razão dominantes. Passando a expressar seus planos em
contos e novelas, segundo ele, uma forma peculiar de preservar-se contra
possíveis perseguições. Apesar da pretensa vida monástica, apaixonou-se por
Kátia, amor de juventude de seu irmão, passando a sofrer com as tentações da
carne.
Kátia
escutou por duas vezes: DEUS SOU EU! Por duas vezes foi obrigada a adorar os
autores de tal frase. Algumas vezes foi espancada, para ter confirmada a sua
adoração. Quando ouviu pela décima vez: serei um homem extraordinário, e tenho
um projeto: enlouquecer! Percebeu que os homens que ela conhecera em épocas
diferentes, em cidades diferentes, cada um representava, a seu modo, a metade
perdida do outro - cada um, sendo o próprio outro, tornava-se, ele próprio, um
outro pela crença na possível afirmação de si mesmo e do outro que negava não
ser.
Kátia
gostava de Schiller, Dickens, Byron, Puchkin e Gogol. Dostoié não suportando
conviver com aquela mulher que não mais conseguia fingir submissão, resolveu
casar e ter filhos – conservou-se um sonhador. Ki, mesmo em seu isolamento, não
conseguiu se livrar totalmente das ardentes lembranças das noites brancas nem
do amargo sentimento de culpa.
Kátia,
cansada dos salões de Moscou e são Petersburgo, fugiu para a Europa e se tornou
dançarina em um café de Paris. Numa boate, quando esteve de férias em Turim,
conheceu um professor alemão, nascido na Prússia, que se considerava polonês, chamado
Friedrich Nietzsche. Para preservar a sua identidade, apresentou-se ao novo
amigo com o nome de Salomé. Friedrich logo se lembrou de uma velha amizade e,
prevendo refestelar-se naquela noite, gargalhou para dentro, como só ele sabia
fazer. Conversaram o suficiente para não se aborrecerem um com o outro; em
seguida foram para um quartinho de hotel nos arredores da cidade. Nietzsche,
que até então não conhecia muito bem o martelar dos prazeres carnais,
tresvariou, pelo menos, em grego, russo, francês e hebraico. Depois sentenciou:
“tudo decisivo acontece apesar de tudo”.
Kátia, que
ainda não sabia estar com sífilis, saiu antes de o pensador despertar; na
pressa, esqueceu sobre a mesa um grande romance russo. Naquela manhã, além do
treponema, o filósofo acordou com uma incontrolável vontade de potência
apontada para o alto.
[*Parte
integrante do livro: DISPERSÕES (no prelo)].
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# LEIA TAMBÉM:
LUCIANO
BONFIM [1971] nasceu em
Crateús-CE, é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Tem
publicadas as obras: Janeiros
sentimentos poéticos [poesia,
1992]; Beber água é tomar
banho por dentro [poesia,
2006]; Dançando com sapatos
que incomodam [contos, 2002]; Móbiles: hestórias e considerações [contos, 2007]; Aliterar versos 20/60 + alguns
instantâneos [ficção/poética,
2013]. Escreveu e montou as peças: Auto
do menino encantado [2002] e As mulheres cegas [2000]. Integra o grupo de teatro
Permanência Provisória. Em 2010 foi selecionado pela Funarte (programa de
criação literária) com o projeto Caminhos do Sol [livro e exposição
fotográfica]. Tem no prelo os livros: Dispersões;
As aventuras de Leôncio; e Caracol e outros poemas para
crianças. [contatos: lucianogbonfim@gmail.com
/ http://permanenciaprovisoria.blogspot.com.br/] .