Vintage pocket watch - Jorge Royan |
I.
Em sua silente combustão, o Tempo
(penoso combustível
que
nos escasseia)
é este cheiro da tarde
é este cheiro da tarde
que bebe do suor
do meu corpo
(máquina arcaica e
inútil
ante seu deus
incorpóreo).
Nada Lhe posso contra:
Nada Lhe posso contra:
eu,
que aqui parado me findo,
que aqui parado me findo,
que aqui sentado me extingo,
sou senão de Vós o húmus,
meu senhor e meu deus.
II.
Não sei dizer ao certo:
II.
Não sei dizer ao certo:
se agora ou se antes,
se hoje se antanho,
se memória e mais nada,
se medo ou certeza
se medo ou certeza
pisando-me os calcanhares;
ao certo não sei,
ao certo não sei,
mas enquanto no chão dessa
tarde já quase extinta,
varrido por esse ar,
se iam aqueles meninos
sobre seus
grandiloquentes cavalos de talo,
enquanto, além, pacíficas,
pastam crias;
enquanto nesse chão tudo isso existia
enquanto nesse chão tudo isso existia
em sua ordinária
existência
(ninguém lavrará em cartório
o milagre de sua consumação
enquanto coisa do mundo);
enquanto tudo isso existia:
olhei teu rosto
enquanto tudo isso existia:
olhei teu rosto
e me doeu a premonição
de que um dia,
um de nós,
consolará a memória que ficar
do outro.
III.
E já tudo não existirá:
nem rosto
nem pele
nem suor
nem afago
nem gesto
nem nada;
já nada existirá
porque existir
é deixar.
Eis a contundência sumária das coisas:
existir-deixar —
mais seu milagre
da memória dos gestos
enquanto isso.
* Leia também "ARGILA PROVISÓRIA"
___________
um de nós,
consolará a memória que ficar
do outro.
III.
E já tudo não existirá:
nem rosto
nem pele
nem suor
nem afago
nem gesto
nem nada;
já nada existirá
porque existir
é deixar.
Eis a contundência sumária das coisas:
existir-deixar —
mais seu milagre
da memória dos gestos
enquanto isso.
* Leia também "ARGILA PROVISÓRIA"
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Dércio Braúna [editor
de Kaya] - é poeta, contista, historiador; autor
de O pensador do jardim
dos ossos, A
selvagem língua do coração das coisas, Metal sem húmus, Como um cão que sonha a noite só, Uma nação entre dois mundos:
questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto.