Crash! - Umberto Salvagnin |
I.
Mesmo quando não,
há um canto no fundo da garganta.
Mesmo quando não,
há
nesse
duro ato de existirmos
a
brandura dos gestos que esquecemos.
II.
Mesmo quando não,
viver é contundente.
III.
Por isso não se cala um incêndio:
este de fabrico primevo
a que guardamos lá onde somos,
a crepitar no fundo das carnes
uma voz, um chamamento,
um nome para esta coisa que não há
(nem nunca há de haver) –
Deus é um bonito sonho infeliz.
IV.
Mesmo quando não há,
meu canto se urde
dessa ordinária, teimada
felicidade
das
criaturas
(seu duro haver contra a
ordem das coisas).
V.
Mesmo quando não há,
meu deus é um gesto de
chegar ao perto
dessas gentes que se vão
e eu não
sei.
“O que não posso dizer, sou eu.”*
[* ADRIENNE RICH, Uma paciência selvagem, p. 225]
* Leia também A CONTUNDÊNCIA SUMÁRIA DAS COISAS
___________
Dércio Braúna [editor de Kaya] - é poeta, contista, historiador; autor
de O pensador do jardim
dos ossos, A
selvagem língua do coração das coisas, Metal sem húmus, Como um cão que sonha a noite só, Uma nação entre dois mundos:
questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto