Uma Paciência Selvagem - Adrienne Rich |
Não tenho
estatísticas, gráficos e mais ordenamento de números para comprovar, por isso
afirmarei com um sentimento –
arriscando-me, bem sei, a todas as consequências dessa afirmação não calcada na
mais estrita razão comprobatória: muita da poesia que hoje (e já a certo tempo)
nos rodeia abdicou de se erigir contra o seu tempo; aqueles que ainda o fazem
parecem ser dignos senão de um pacífico silêncio por parte daqueles que (ainda)
tomam a poesia em consideração, em apreciação. A poesia do tempo presente (uma
sua boa parte, mais prudentemente dizendo) parece voltar costas, tapar ouvidos,
fechar boca ao que está além de si, ao que habita à sua porta. E antes de mais
dizer, que se atente a que aqui não se coloca uma cabal generalização: disse
“muita da” e não “toda a” poesia que hoje nos rodeia. Que claro fique este
ponto de partida.
É certo (não
posso fechar os olhos a isso) que esse sentimento, quiçá, diz muito mais da
sensibilidade de quem o afirma do que do “campo” do fazer poético do tempo
presente; é certo que a cada um a sua conta poética, o seu gosto pelo que cabe
ou não cabe à poesia dizer. E há de certo ser, ainda, que em cada tempo houve,
há e há de haver poesia e poesia, concepções e concepções sobre o seu afazer:
poesia insurreta, contemplativa, metafísica, hermética, enfim...
Mas, como
disse, trata-se de um sentimento, e é disso que falo: eis a minha prova; eis (é certo) a minha nudez ante
os argumentos que contra esse sentir se ordenem.
Mas é um
outro sentimento (a contraface do antes referido) o que move essas linhas: o da
surpresa de um encontro, da candente e violenta descoberta de uma voz, de uma
poesia que se ergue contra o tempo que habita, que, ereta, lúcida, nos diz:
Poeta [...]: as palavras –quer queiramos, quer não –existem num tempo que lhes é próprio. [p. 189];
por tal, e
“em nome da poesia”, “preciso [precisamos, os que escrevemos] de saber estas
coisas” [p. 191].
Assim escreveu uma mulher em parte boa e em parte corajosa, que lutou com aquilo que em parte compreendeu. [p. 45]
Assim
escreveu Adrienne Rich. Uma poeta que não aceitou o mundo como lhe era dado,
que ante um “tempo macho” [p. 45] soube fazer ouvir sua voz de mulher. Não uma
mulher conformada ao desenho que lhe quiseram dar, mas uma mulher “incisiva” em
seu viver:
ousarei habitar o mundo movendo-me incisiva como uma enguia [...] [p. 61]
Para
Adrienne, “nós somos as nossas palavras”, daí a ética consequência de que, “o
mundo, temos de o fazer” [p. 75], temos de questionar seu
[...] livro de mitos onde os nossos nomes não aparecem. [p. 103]
Para mim, não
resta dúvida: é “violenta, arcana, comum, talhada da mais comum substância
viva” a poesia de Adrienne, escrita que se constrói “ardendo de dentro do veio”
[p. 111] do seu tempo. A mim, resta-me esse sentimento vertiginoso, essa
ardente voragem de a descobrir, palavra a palavra, verso a verso, em sua lúcida
e contundente feitura poética.
Não admira
que duas suas tradutoras, contundentemente, nos advirtam: “Não se lê Rich
impunemente.” [p. 26]. Teem razão estas senhoras.
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NOTA BIBLIOGRÁFICA
* Verso de Adrienne Rich.
OBRAS DE ADRIENNE RICH
A change of world [Mudança de mundo], 1951
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Dércio Braúna [editor de Kaya] - é poeta, contista, historiador; autor de O pensador do jardim dos ossos, A selvagem língua do coração das coisas, Metal sem húmus, Como um cão que sonha a noite só, Uma nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto.