Luz cayendo - Hebertsanchez |
[...] vivemos num quarto fechado e
pintamos o mundo e o universo nas
paredes dele.
JOSÉ SARAMAGO, História do Cerco de Lisboa
“LUDOVICA FERNANDES MANO faleceu em Luanda, na clínica Sagrada
Esperança, às primeiras horas do dia 5 de outubro de 2010. Contava oitenta e
cinco anos.”1
Foi assim,
pela leitura de uma nota breve em fim de página num pequeno jornal dominical,
que o velho homem, veterinário de profissão e escandinavo de pátria, assim
dizia, soube que não mais voltaria a ver Ludovica. São assim as coisas, pensou
consigo: alguém um dia nos cruza o caminho, nos cruza a vida, depois se vai,
mais nada sabemos, para um dia, outro tão distante dia, voltarmos a visitar a
memória buscando os traços, desfeitos pelas tortas linhas disto a que chamamos
tempo, deste alguém, por quem, não obstante a ausência toda de tempo tanto,
quase chegamos a lhe dedicar uma lágrima rasa, mas filha de sentir sincero.
Ludovica está morta, disse-se, quiçá para se ouvir, o velho homem, enquanto,
fechando o jornal e o pondo sobre a mesa, foi-se em direção à janela.
A tarde já havia principiado sua queda. Pela calçada, uma aragem
tranquila varria as folhas caídas das acácias. Além, depois da calçada, depois
do asfalto, contumazes sonhadores dominicais povoavam de vozes o areal. “O fim
de tarde no campinho era como o cenário de um sonho”, o piso de areia batida
“impregnava o ar com uma poeira marrom que flutuava como se imóvel por minutos
a fio, recusando-se a aceitar a ordem das coisas e se precipitar de volta ao
chão.”2 No meio dela, os sonhadores de domingo davam a suas
vidas a alegria que em breve, qual a tarde, se acabaria. Tudo se acaba.
Nesta tarde, o velho veterinário escandinavo acrescentou ao
cenário visto de sua janela uma mais tristeza, uma saudade, que de agora em
diante, talvez (quem há de saber?), carregue. Não conseguia rememorar em
nítidos traços o rosto de Ludovica, mas sabia, era certa, sua beleza.
Conheceu Ludovica há muito tempo. Numa manhã. “Era muito cedo.
Antes da hora do sol.” Ouviu baterem à porta. Levantou-se devagar, arrastou-se
até a porta, “chinelos inaugurando o chão da manhã”. Não perguntou nada à
estranha, era seu costume. Sabia ouvir outras falas das gentes, aquelas que se
diz virem da alma (ou do coração, para outros). Também porque quem tão longe ia
ter, naquela velha loja “escondida nas arquitecturas mais góticas da
Escandinávia”, decerto precisava de seus remédios.
Lembra-se de lhe ter preparado um chá e a servido. Ludovica, que
só muito depois lhe anunciou o nome, aceitara. Foi depois do chá que em fim
conversaram sobre a vinda daquela mulher a tão distante paragem. Ela não era a
primeira, mas seria a última, decidiu-se, depois, o veterinário escandinavo, a
fazer uso dos remédios de que era conhecedor. Depois do efeito
do chá (suspender o funcionamento do corpo, anestesiá-lo), o homem realizou
mais um (o último) de seus prodígios: substitui o velho coração escurecido de
solidão da mulher por um novo.
Ao acordar, “tonta mas com uma sensação de aconchego no peito”,
Ludovica nada falou. Simplesmente, e serenamente, chorou. Um choro de limpeza
de alma. Antes de sair, tomou mais um chá lhe oferecido pelo homem. Que, depois,
jà à porta para a despedida, lhe ofereceu um maço de folhas, já algo
amareladas.
“― Leve isto consigo. Vai servir-lhe para ser feliz!”
Eram todos seus “apontamentos sobre a sensibilidade dos porcos”.
“― Você é a primeira pessoa a levar um coração com o
respectivo manual de felicidade”.
Foram as derradeiras palavras do homem à mulher que, já noite
feita, se perdia pela escuridão dos ermos das arquitecturas mais góticas da
Escandinávia.3
A partir daquele dia, a velha loja nunca mais voltou a funcionar.
O coração de porco que Ludovica passou a carregar ao peito foi o último
prodígio operado naquele lugar. Naquela noite, todos os demais bichos
existentes na loja foram soltos e o seu proprietário, tal qual Ludovica, partiu
mundo a fora.
E foi num canto desse mundo-grande, numa pequena cidade
portuguesa, que naquela tarde de domingo o ora velho e ex-veterinário
escandinavo leu sobre a morte de Ludovica.
Não apenas leu. Leu e resolveu partir. Decidiu isso ali mesmo, da
sua janela, enquanto espiava, além, os meninos sonhadores de domingo no
campinho de areia do outro lado da rua. Juntou alguns pertences, algum
dinheiro, e rumou a Luanda. Não conseguiria ficar sem saber mais sobre a mulher
que carregou dentro do peito o seu último milagre. É certo que
aquilo que mais o interessava jamais poderia saber: o que sentira o coração de
Ludovica?; não o músculo-batedor, mas o coração-de-sentir, esse que dói e pede
querer, afeto, outro coração-de-sentir a que se juntar. Não obstante essa
certeza, o velho homem seguiu seu coração.
Chegou a Luanda quase a meio do dia. Era terça-feira, 12 de
outubro de 2010, dois dias depois de ter lido sobre a morte de Ludovica. Seguiu
direto à clínica Sagrada Esperança, a única informação de que disponha. Lá foi
informado de que a Sra. Ludovica Fernandes Mano fora sepultada no dia seguinte
a seu falecimento; que foram poucos os que compareceram a seu enterro; que
ninguém viera de sua terra natal em Portugal; que ela morrera de morte natural;
que chegara ali, naquela clínica, há cinco anos; que quem mais dela sabia era
Sabalu Estevão Capitango, que a havia conhecido ainda no tempo em que vivera
(ela, Ludovica) enclausurada num apartamento, no último andar do Prédio dos
Invejados. Tudo isto soube o velho ex-veterinário escandinavo por uma simpática
funcionária da clínica Sagrada Esperança, que também lhe indicou onde poderia
encontrar o senhor Sabalu.
Mas antes de ir à procura de Sabalu, o velho ex-veterinário
escandinavo foi à procura de mais saber sobre Ludovica. Descobriu, no recém
inaugurado Museu da Informação de Luanda, que uma certa senhora portuguesa,
aterrorizada com os acontecimentos da revolução independentista de 1975, havia
erguido uma parede a separar o apartamento em que vivia do resto do mundo; que
durante cerca de trinta anos aí vivera – a que custo e com que meios nunca se
veio a saber –; que teve uma filha, fruto de uma violação que sofreu, tendo
sido essa sua filha, que ao saber-se adotada, buscou encontrar sua mãe
biológica – num dos recortes de jornal sobre “o caso da emparedada”, como
alguns passaram a se referir, havia mesmo a transcrição da carta de Maria da
Piedade Lourenço (assim se chama a filha de Ludovica) ao diretor do Jornal de
Angola buscando saber de sua mãe biológica –; descobriu ainda que nos quase
trinta anos de enclausuramento a única ligação de Ludovica com o mundo foi um
menino, que, subindo-se pelos galhos de uma grande mulembe, conseguiu chegar
até o apartamento de Ludovica, com o objetivo de o assaltar (buscava, o menino,
pão e o mais que pudesse comer em tempos de fome), mas depois disso passou a lá
ir com constância, até o dia em que quebrou a parede que separava o mundo de
Ludovica do mundo de Luanda. Era Sabalu. Foi ele a informar isto tudo aos
jornais de Luanda sobre a “avó”, como chamava Ludovica.
Ainda nesse mesmo dia, depois de contemplar o entardecer luandense
nas areias do Mussulo, o velho ex-veterinário escandinavo iniciou sua busca a
Sabalu. Obteve muitas informações, mas não o conseguiu encontrar. Só na noite
seguinte pode, enfim, ficar diante daquele que, anos antes, havia partilhado do
mundo de Ludovica Mano.
Mas, diferentemente de quase todos que se aproximavam de Sabalu, o
velho ex-veterinário escandinavo não quis saber dos pormenores, porventura
ainda não revelados, dos dias de Sabalu com a “avó”. O velho homem tinha apenas
uma pergunta a fazer. E não se demorou em arrodeios:
― Ela lhe disse se chegou a ser feliz?
Sabalu não soube o que responder. Nos dias de convívio com a
“avó”, tinha-lhe ouvido contar muitas coisas, também sabia que havia silenciado
muitas outras. É certo que nada leva a crer que uma mulher que por quase trinta
anos se apartou do mundo possa ter sido feliz. Mas Sabalu sabia que a vida de
Ludovica não obedecera aos retos ditames da razão estrita. Apartada do mundo, a
“avó” soube criar o seu. A prova disso fora o “livro” de sua vida, que deixou,
escrito a carvão, nas paredes de sua clausura.
Depois de longo silêncio, Sabalu se levantou. Foi até um armário,
abriu uma de suas gavetas e, voltando à cadeira em que estava, sentou-se. Então
estendeu ao velho homem sentado diante de si um saco plástico; dentro dele,
umas velhas folhas amareladas fizeram disparar o coração do velho escandinavo.
Eram seus apontamentos sobre a sensibilidade dos porcos que um dia dera a
Ludovica. Os olhos do velho denunciaram o que estava a sentir. Sabalu não
precisou ouvir nada para saber que aquele velho diante de si era o homem de quem
um dia Ludovica lhe falara.
― Nunca acreditei naquela estória que a “avó” contou. Ela
dizia muitas coisas.
― Foi tudo verdade, meu rapaz. Foi tudo verdade – disse o
velho a Sabalu, já as lágrimas lhe correndo dos olhos.
Saído daquele encontro, o velho ex-veterinário escandinavo andou
sem rumo pela noite de Luanda. Só de volta ao quarto do hotel em que se
hospedara, já manhã feita, se pôs a inspecionar, com vagar e ternura, as velhas
e amareladas folhas que um dia escrevera. Foi então que descobriu entre elas
umas outras, com uma tonalidade menos encardida de tempo, a denunciar serem
mais recentes que as suas. Eram escritos de Ludovica. O coração do velho
escandinavo mais se marejou. Enquanto lia os escritos de Ludovica, há de ter
pensado, o velho homem, que talvez tenha vivido para aquele momento, para saber
das confissões daquela que, um dia, lhe cruzou o caminho e lhe fez mudar a sua.
Dias depois do encontro com Sabalu e de ler os escritos de
Ludovica, o velho ex-veterinário escandinavo rumou para o norte de Angola. Foi
a Ambaca. Foi disposto a encontrar o Puri Careombolo. Foi
realizar o desejo último de Ludovica Fernandes Mano. Foi em busca de encontrar
a Nossa Senhora da Pedra Preta.
Dentre os papéis que deixara, Ludovica havia recortado um escrito
antigo, de um velho livro de outros tempos. Nele se fala de “uma obra admirável
da natureza a que os naturais de Ambaca chamam o Puri de Careombolo”,
e que era descrita do seguinte modo:
[...] logo abaixo [da entrada da gruta] do lado direito fica um lago, para o interior de uma imensa abóboda, cuja altura na parte mais elevada rastejará por vinte braças, ou pouco menos... esta abóboda esbranquiçada dos lados, formando o imo em altura de braça uma espécie de barra verde e apresentando por cima uma variedade de cores vivas que o pintor mais hábil talvez não igualasse: no centro do fundo está um grande torrão de pedra d’alto abaixo, formando por trás duas entradas; entre muitas coisas dignas de atenção está um buraco n’este torrão em forma de capela, no qual está uma imagem de pedra, digo, uma pequena pedra em bruto, que figura ou representa a imagem de Nossa Sra. Sant’Anna a que os moradores do distrito chamam ‘Nossa Senhora da Pedra Preta’ que tem a seu lado alguns papéis de promessas que algumas pessoas com devoção alli teem hido collocar.4
Atrás do recorte, Ludovica Fernandes Mano, em tremida e quase
indecifrável caligrafia, escrevera:
― Nunca tive tanta paz quanto quando estive ao perto da santa
preta. Nunca meu coração se encheu de tanta terna alegria quanto quando fiquei
ali, sem mais, só eu e a divina senhora de pedra. Só nós duas e as tantas
desgastadas esperanças das tantas gentes que ali deixaram seus pedires, suas
súplicas, suas gratidões. Não hei de morrer sem ali voltar. Se os desígnios
divinos vierem antes, que então lá me levem e me ponham junto àqueles
papelinhos que conversam com deus. [Luanda, 04 de outubro de 2010].
Depois de deixar o escrito de Ludovica junto à Nossa Senhora da
Pedra Preta, o velho ex-veterinário escandinavo deixou Ambaca. Pelo caminho,
uma chuva serena foi companheira. Chegou a Luanda ao anoitecer. Uma lua saltada
de versos de poetas se agigantava no céu. Sob ela, a cidade pulsava. Ao velho
escandinavo restava o merecido sono dos justos. Amanhã havia de pensar no que
fazer da vida. Por hoje, seu coração estava em paz.
___________
* E se amanhã o medo foi
construído a partir da costura de imaginações. Sempre quis imaginar o que teria
acontecido com a mulher e o homem que se vão pelo mundo após o ponto final do
conto "Coração de porco" (em E se amanhã o medo), de
Ondjaki. À mulher, imaginei que pudesse ter sido ela Ludovica Fernandes Mano,
cuja vida ganhou escritura nas linhas do romance Teoria Geral do
Esquecimento, de José Eduardo Agualusa. Ao homem (um velho
escandinavo), o pus a viver em Lisboa. À geografia para os
encontros/desencontros de ambos, tempos depois, a encontrei na poesia da Paula
Tavares (em Amargos como os frutos). Vorei imagens, ainda, à
escrita de Daniel Galera (em Mãos de cavalo). A costurar todas
essas vidas, usei a solidão de nosso existir.
1 JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, Teoria
geral do esquecimento (nota prévia), [p. 9].
2 DANIEL GALERA, Mãos de
cavalo [p. 31-32].
3 ONDJAKI, E se amanhã o
medo [p. 29-32].
4 PAULA TAVARES, Amargos
como os frutos [p. 153], citando Manoel Alves de Castro Francina,
em Itinerário de uma jornada de Luanda ao distrito de Ambaca, de
1854.
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Dércio Braúna [editor de Kaya]
- é poeta, contista, historiador; autor de O pensador do jardim dos ossos, A selvagem
língua do coração das coisas, Metal sem húmus, Como um cão
que sonha a noite só, Uma nação entre dois mundos: questões
pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto.