sábado, 13 de abril de 2013

E SE AMANHÃ A SOLIDÃO (ou A triste e inaudita história de Ludovica Fernandes Mano) (Dércio Braúna)


Luz cayendo - Hebertsanchez


[...] vivemos num quarto fechado e
pintamos o mundo e o universo nas
paredes dele.
JOSÉ SARAMAGO, História do Cerco de Lisboa



“LUDOVICA FERNANDES MANO faleceu em Luanda, na clínica Sagrada Esperança, às primeiras horas do dia 5 de outubro de 2010. Contava oitenta e cinco anos.”1

Foi assim, pela leitura de uma nota breve em fim de página num pequeno jornal dominical, que o velho homem, veterinário de profissão e escandinavo de pátria, assim dizia, soube que não mais voltaria a ver Ludovica. São assim as coisas, pensou consigo: alguém um dia nos cruza o caminho, nos cruza a vida, depois se vai, mais nada sabemos, para um dia, outro tão distante dia, voltarmos a visitar a memória buscando os traços, desfeitos pelas tortas linhas disto a que chamamos tempo, deste alguém, por quem, não obstante a ausência toda de tempo tanto, quase chegamos a lhe dedicar uma lágrima rasa, mas filha de sentir sincero. Ludovica está morta, disse-se, quiçá para se ouvir, o velho homem, enquanto, fechando o jornal e o pondo sobre a mesa, foi-se em direção à janela.

A tarde já havia principiado sua queda. Pela calçada, uma aragem tranquila varria as folhas caídas das acácias. Além, depois da calçada, depois do asfalto, contumazes sonhadores dominicais povoavam de vozes o areal. “O fim de tarde no campinho era como o cenário de um sonho”, o piso de areia batida “impregnava o ar com uma poeira marrom que flutuava como se imóvel por minutos a fio, recusando-se a aceitar a ordem das coisas e se precipitar de volta ao chão.”2 No meio dela, os sonhadores de domingo davam a suas vidas a alegria que em breve, qual a tarde, se acabaria. Tudo se acaba.

Nesta tarde, o velho veterinário escandinavo acrescentou ao cenário visto de sua janela uma mais tristeza, uma saudade, que de agora em diante, talvez (quem há de saber?), carregue. Não conseguia rememorar em nítidos traços o rosto de Ludovica, mas sabia, era certa, sua beleza.

Conheceu Ludovica há muito tempo. Numa manhã. “Era muito cedo. Antes da hora do sol.” Ouviu baterem à porta. Levantou-se devagar, arrastou-se até a porta, “chinelos inaugurando o chão da manhã”. Não perguntou nada à estranha, era seu costume. Sabia ouvir outras falas das gentes, aquelas que se diz virem da alma (ou do coração, para outros). Também porque quem tão longe ia ter, naquela velha loja “escondida nas arquitecturas mais góticas da Escandinávia”, decerto precisava de seus remédios.

Lembra-se de lhe ter preparado um chá e a servido. Ludovica, que só muito depois lhe anunciou o nome, aceitara. Foi depois do chá que em fim conversaram sobre a vinda daquela mulher a tão distante paragem. Ela não era a primeira, mas seria a última, decidiu-se, depois, o veterinário escandinavo, a fazer uso dos remédios de que era conhecedor. Depois do efeito do chá (suspender o funcionamento do corpo, anestesiá-lo), o homem realizou mais um (o último) de seus prodígios: substitui o velho coração escurecido de solidão da mulher por um novo.

Ao acordar, “tonta mas com uma sensação de aconchego no peito”, Ludovica nada falou. Simplesmente, e serenamente, chorou. Um choro de limpeza de alma. Antes de sair, tomou mais um chá lhe oferecido pelo homem. Que, depois, jà à porta para a despedida, lhe ofereceu um maço de folhas, já algo amareladas.

“― Leve isto consigo. Vai servir-lhe para ser feliz!”

Eram todos seus “apontamentos sobre a sensibilidade dos porcos”.

“― Você é a primeira pessoa a levar um coração com o respectivo manual de felicidade”.

Foram as derradeiras palavras do homem à mulher que, já noite feita, se perdia pela escuridão dos ermos das arquitecturas mais góticas da Escandinávia.3

A partir daquele dia, a velha loja nunca mais voltou a funcionar. O coração de porco que Ludovica passou a carregar ao peito foi o último prodígio operado naquele lugar. Naquela noite, todos os demais bichos existentes na loja foram soltos e o seu proprietário, tal qual Ludovica, partiu mundo a fora.

E foi num canto desse mundo-grande, numa pequena cidade portuguesa, que naquela tarde de domingo o ora velho e ex-veterinário escandinavo leu sobre a morte de Ludovica.

Não apenas leu. Leu e resolveu partir. Decidiu isso ali mesmo, da sua janela, enquanto espiava, além, os meninos sonhadores de domingo no campinho de areia do outro lado da rua. Juntou alguns pertences, algum dinheiro, e rumou a Luanda. Não conseguiria ficar sem saber mais sobre a mulher que carregou dentro do peito o seu último milagre. É certo que aquilo que mais o interessava jamais poderia saber: o que sentira o coração de Ludovica?; não o músculo-batedor, mas o coração-de-sentir, esse que dói e pede querer, afeto, outro coração-de-sentir a que se juntar. Não obstante essa certeza, o velho homem seguiu seu coração.

Chegou a Luanda quase a meio do dia. Era terça-feira, 12 de outubro de 2010, dois dias depois de ter lido sobre a morte de Ludovica. Seguiu direto à clínica Sagrada Esperança, a única informação de que disponha. Lá foi informado de que a Sra. Ludovica Fernandes Mano fora sepultada no dia seguinte a seu falecimento; que foram poucos os que compareceram a seu enterro; que ninguém viera de sua terra natal em Portugal; que ela morrera de morte natural; que chegara ali, naquela clínica, há cinco anos; que quem mais dela sabia era Sabalu Estevão Capitango, que a havia conhecido ainda no tempo em que vivera (ela, Ludovica) enclausurada num apartamento, no último andar do Prédio dos Invejados. Tudo isto soube o velho ex-veterinário escandinavo por uma simpática funcionária da clínica Sagrada Esperança, que também lhe indicou onde poderia encontrar o senhor Sabalu.

Mas antes de ir à procura de Sabalu, o velho ex-veterinário escandinavo foi à procura de mais saber sobre Ludovica. Descobriu, no recém inaugurado Museu da Informação de Luanda, que uma certa senhora portuguesa, aterrorizada com os acontecimentos da revolução independentista de 1975, havia erguido uma parede a separar o apartamento em que vivia do resto do mundo; que durante cerca de trinta anos aí vivera – a que custo e com que meios nunca se veio a saber –; que teve uma filha, fruto de uma violação que sofreu, tendo sido essa sua filha, que ao saber-se adotada, buscou encontrar sua mãe biológica – num dos recortes de jornal sobre “o caso da emparedada”, como alguns passaram a se referir, havia mesmo a transcrição da carta de Maria da Piedade Lourenço (assim se chama a filha de Ludovica) ao diretor do Jornal de Angola buscando saber de sua mãe biológica –; descobriu ainda que nos quase trinta anos de enclausuramento a única ligação de Ludovica com o mundo foi um menino, que, subindo-se pelos galhos de uma grande mulembe, conseguiu chegar até o apartamento de Ludovica, com o objetivo de o assaltar (buscava, o menino, pão e o mais que pudesse comer em tempos de fome), mas depois disso passou a lá ir com constância, até o dia em que quebrou a parede que separava o mundo de Ludovica do mundo de Luanda. Era Sabalu. Foi ele a informar isto tudo aos jornais de Luanda sobre a “avó”, como chamava Ludovica.

Ainda nesse mesmo dia, depois de contemplar o entardecer luandense nas areias do Mussulo, o velho ex-veterinário escandinavo iniciou sua busca a Sabalu. Obteve muitas informações, mas não o conseguiu encontrar. Só na noite seguinte pode, enfim, ficar diante daquele que, anos antes, havia partilhado do mundo de Ludovica Mano.

Mas, diferentemente de quase todos que se aproximavam de Sabalu, o velho ex-veterinário escandinavo não quis saber dos pormenores, porventura ainda não revelados, dos dias de Sabalu com a “avó”. O velho homem tinha apenas uma pergunta a fazer. E não se demorou em arrodeios:

― Ela lhe disse se chegou a ser feliz?

Sabalu não soube o que responder. Nos dias de convívio com a “avó”, tinha-lhe ouvido contar muitas coisas, também sabia que havia silenciado muitas outras. É certo que nada leva a crer que uma mulher que por quase trinta anos se apartou do mundo possa ter sido feliz. Mas Sabalu sabia que a vida de Ludovica não obedecera aos retos ditames da razão estrita. Apartada do mundo, a “avó” soube criar o seu. A prova disso fora o “livro” de sua vida, que deixou, escrito a carvão, nas paredes de sua clausura.

Depois de longo silêncio, Sabalu se levantou. Foi até um armário, abriu uma de suas gavetas e, voltando à cadeira em que estava, sentou-se. Então estendeu ao velho homem sentado diante de si um saco plástico; dentro dele, umas velhas folhas amareladas fizeram disparar o coração do velho escandinavo. Eram seus apontamentos sobre a sensibilidade dos porcos que um dia dera a Ludovica. Os olhos do velho denunciaram o que estava a sentir. Sabalu não precisou ouvir nada para saber que aquele velho diante de si era o homem de quem um dia Ludovica lhe falara.

― Nunca acreditei naquela estória que a “avó” contou. Ela dizia muitas coisas.

― Foi tudo verdade, meu rapaz. Foi tudo verdade – disse o velho a Sabalu, já as lágrimas lhe correndo dos olhos.

Saído daquele encontro, o velho ex-veterinário escandinavo andou sem rumo pela noite de Luanda. Só de volta ao quarto do hotel em que se hospedara, já manhã feita, se pôs a inspecionar, com vagar e ternura, as velhas e amareladas folhas que um dia escrevera. Foi então que descobriu entre elas umas outras, com uma tonalidade menos encardida de tempo, a denunciar serem mais recentes que as suas. Eram escritos de Ludovica. O coração do velho escandinavo mais se marejou. Enquanto lia os escritos de Ludovica, há de ter pensado, o velho homem, que talvez tenha vivido para aquele momento, para saber das confissões daquela que, um dia, lhe cruzou o caminho e lhe fez mudar a sua.

Dias depois do encontro com Sabalu e de ler os escritos de Ludovica, o velho ex-veterinário escandinavo rumou para o norte de Angola. Foi a Ambaca. Foi disposto a encontrar o Puri Careombolo. Foi realizar o desejo último de Ludovica Fernandes Mano. Foi em busca de encontrar a Nossa Senhora da Pedra Preta.

Dentre os papéis que deixara, Ludovica havia recortado um escrito antigo, de um velho livro de outros tempos. Nele se fala de “uma obra admirável da natureza a que os naturais de Ambaca chamam o Puri de Careombolo”, e que era descrita do seguinte modo:

[...] logo abaixo [da entrada da gruta] do lado direito fica um lago, para o interior de uma imensa abóboda, cuja altura na parte mais elevada rastejará por vinte braças, ou pouco menos... esta abóboda esbranquiçada dos lados, formando o imo em altura de braça uma espécie de barra verde e apresentando por cima uma variedade de cores vivas que o pintor mais hábil talvez não igualasse: no centro do fundo está um grande torrão de pedra d’alto abaixo, formando por trás duas entradas; entre muitas coisas dignas de atenção está um buraco n’este torrão em forma de capela, no qual está uma imagem de pedra, digo, uma pequena pedra em bruto, que figura ou representa a imagem de Nossa Sra. Sant’Anna a que os moradores do distrito chamam ‘Nossa Senhora da Pedra Preta’ que tem a seu lado alguns papéis de promessas que algumas pessoas com devoção alli teem hido collocar.4

Atrás do recorte, Ludovica Fernandes Mano, em tremida e quase indecifrável caligrafia, escrevera:

― Nunca tive tanta paz quanto quando estive ao perto da santa preta. Nunca meu coração se encheu de tanta terna alegria quanto quando fiquei ali, sem mais, só eu e a divina senhora de pedra. Só nós duas e as tantas desgastadas esperanças das tantas gentes que ali deixaram seus pedires, suas súplicas, suas gratidões. Não hei de morrer sem ali voltar. Se os desígnios divinos vierem antes, que então lá me levem e me ponham junto àqueles papelinhos que conversam com deus. [Luanda, 04 de outubro de 2010].

Depois de deixar o escrito de Ludovica junto à Nossa Senhora da Pedra Preta, o velho ex-veterinário escandinavo deixou Ambaca. Pelo caminho, uma chuva serena foi companheira. Chegou a Luanda ao anoitecer. Uma lua saltada de versos de poetas se agigantava no céu. Sob ela, a cidade pulsava. Ao velho escandinavo restava o merecido sono dos justos. Amanhã havia de pensar no que fazer da vida. Por hoje, seu coração estava em paz.

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* E se amanhã o medo foi construído a partir da costura de imaginações. Sempre quis imaginar o que teria acontecido com a mulher e o homem que se vão pelo mundo após o ponto final do conto "Coração de porco" (em E se amanhã o medo), de Ondjaki. À mulher, imaginei que pudesse ter sido ela Ludovica Fernandes Mano, cuja vida ganhou escritura nas linhas do romance Teoria Geral do Esquecimento, de José Eduardo Agualusa. Ao homem (um velho escandinavo), o pus a viver em Lisboa. À geografia para os encontros/desencontros de ambos, tempos depois, a encontrei na poesia da Paula Tavares (em Amargos como os frutos). Vorei imagens, ainda, à escrita de Daniel Galera (em Mãos de cavalo). A costurar todas essas vidas, usei a solidão de nosso existir.

1 JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, Teoria geral do esquecimento (nota prévia), [p. 9].
2 DANIEL GALERA, Mãos de cavalo [p. 31-32].

3 ONDJAKI, E se amanhã o medo [p. 29-32].

4 PAULA TAVARES, Amargos como os frutos [p. 153], citando Manoel Alves de Castro Francina, em Itinerário de uma jornada de Luanda ao distrito de Ambaca, de 1854.

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Dércio Braúna [editor de Kaya] - é poeta, contista, historiador; autor de O pensador do jardim dos ossosA selvagem língua do coração das coisasMetal sem húmusComo um cão que sonha a noite sóUma nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto.


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