domingo, 14 de junho de 2015

ALEGORIAS DA MALDIÇÃO [trechos] [Francijési Firmino]


[Ilustração, de Karlson Gracie, no livro Alegorias da maldição]



I. JOSÉ ALCIDES PINTO E O MEDO DA MODERNIZAÇÃO DO ESPAÇO

No ano em que José Alcides Pinto retornou ao Ceará, em 1957, não somente percebera que muito havia mudado no lugar de onde saíra. Iniciava ali também uma ruptura no seu modo de ser escritor. Ao começar a redação da Trilogia da Maldição, de romances em vez de poemas, abriu-se às prosas do Ceará e, como alguém que descobre palavras novas em livros antigos, dava início ao diálogo com tantos outros discursos que pretendiam fabricar o espaço. Marcou ali seu encontro com a criação de romances, com a narrativa, o prosaico; abriu em sua literatura uma clareira onde uma polifonia de modos de conceber e representar o Ceará floresciam e eram enredados pela escrita em sua tradução do espaço e do tempo.[1] Mesmo sendo a Trilogia da Maldição composta de romances considerados fantásticos, acreditamos que com esses escritos o autor mostrou o seu “dedo do cronista”[2], para apontar os lugares onde produzia sua obra, assim como os espaços ocupados por ela em meio aos regimes de verossimilhança e de realidade sobre o Ceará. Foi por meio dessa narrativa que intentamos neste capítulo tramar as conexões entre a autoria e as temporalidades que a perpassam.[3]

Já em seus primeiros livros de poemas, o prosaico aparecia, entretanto, não para se fazer prosador, mas para se conceber como poeta de prosas, de temas pequenos e de vida apequenada, amesquinhado pela morte que lhe aparecia à espreita em seu dia a dia, um poeta de vida sem rimas, cujas regras que separam a grande beleza do poema dos pequenos interesses da narrativa eram contestadas. Poeta que dançou para a solidão, para os gatos no carnaval de Olinda, que via sua espectral irmã, então recentemente morta, pelos guetos de uma existência sem glória, e de um romantismo tenebroso, do absurdo.[4] Que fez, ainda, o que se chamou de poema social de esquerda, escrevendo sobre os meninos nos mangues do Recife, na tentativa de tornar-se, nas palavras do autor, “poeta-popular”, assumindo semelhanças com a forma do cordel.[5] Era pelo poema que lhe interessavam os diálogos com o surrealismo, o concretismo e uma poesia considerada maldita, ao modo de Baudelaire e Rimbaud. Quando retornara ao Ceará, depois de passado pelo Recife e Rio de Janeiro, outro contágio parece ainda ter se justaposto a estes: o Regionalismo Tradicionalista.

Os romances que compõem Trilogia da Maldição, como dissera José Alcides Pinto, “são de tipo regionalista, embora meu regional seja ‘regional-transfigurado’”.[6]Transfigurado justamente por não se conter nas referências comuns a essa literatura, por ser empreendido em meio à justaposição dos diálogos que já havia feito ao escrever poemas, por não se tratar mais de uma escrita que assumisse o cunho realista e nostálgico, mas uma narrativa classificada como fantástica sobre o Ceará. José Alcides Pinto trabalhou com o embaralhamento de variadas propostas artísticas para a literatura, e foi desse modo que se fez tradutor dos lugares de sua escrita, dos cotidianos de palavras que o atravessavam como matérias de sua época e eram transformados em formas de sua poética.[7]

O que desse cotidiano de palavras e não ditos, porém, ganhou a narrativa e foi produzido pelo enredo de José Alcides Pinto ao chegar ao Ceará? A primeira imagem que compõe isso que acreditamos ser o portal para compreendermos José Alcides Pinto está presente ao final do segundo romance da Trilogia da Maldição – Os Verdes Abutres da Colina. Num “dia de domingo, pelas quatro da tarde, no nascente [...] se avistava um cinturão amarelo enlaçando os cimos da Ibiapaba. E vinha caminhando e crescendo rapidamente em direção ao povoado”[8]de Alto dos Angicos de São Francisco do Estreito.

Do lado do poente, das abas da serra do Mucuripe, partiram igualmente os verdes abutres da colina precedidos de sua grande ninhada [...] rugidores e ferozes como jamais se viu. Aproximavam com a mesma velocidade que a formação esquisita, avançando obstinadamente como se medissem as distâncias para se encontrarem sobre povoado ao mesmo tempo. Era o fim de tudo[9].

De oeste a leste no Ceará, se poderia ver o avanço dos abutres verdes e da massa de ar amarela. Quando os dois chegaram em Alto dos Angicos de São Francisco do Estreito, quando se colidiram nos céus daquele fragmento do Estado, segundo as profecias, primeiro se formaria um sorvedouro do tamanho da aldeia, e depois, a partir dele, começaria a consumir todo o resto do Ceará. Ao final, existiria um deserto, um lugar limpo e despovoado, um espaço liso[10], um nada; somente terras e a imensidão. José Alcides, ao conceber suas imagens apocalípticas, não somente o faz a fim de retomar e fazer funcionar em sua narrativa elementos que possuem efeitos de identidade sobre o Ceará, como é o caso do pensamento escatológico. Ele retrama essa imagens de Ceará, entretanto, com o intuito de torná-las alegorias em sua tradução do tempo e do espaço.

Na Trilogia da Maldição, José Alcides afeiçoava a noção de sagrado à de símbolo, à de identidade, como fica notório numa das frases de O Dragão dita por Padre Tibúrcio, o protagonista dos livros: “oh, como o Deus da França, da Itália, da Holanda, do Japão, mesmo o da Rússia, parece ser um só. Em todas as paragens, em todo mundo! Mas o do Ceará... o Deus do Ceará, francamente, eu não sei bem qual é”. [11] Quando se refere a Deus na Trilogia da Maldição, não remete ao transcendente que julgou encontrar ao final de seus Cantos de Lúcifer.[12] Reporta-se a um deus prosaico que dá ordem e sentido ao social; fala de um deus barroco, cuja agência é vista pela condição terrena, no cotidiano, pelo progresso e pela redenção ou destruição da humanidade. Deus, etimologicamente, é o símbolo, o movimento ordenador, que salva o indivíduo da dispersão de verdades, o uno e indivisível, o princípio e o fim, o divino que remonta aos significados primeiros do espaço, as suas significações plenas, com a retidão, a linearidade e o progresso. José Alcides, entretanto, expressava em sua trilogia a maldição em que o Ceará está imerso, lugar diabólico, da dispersão, da destruição, da ira divina, da desordem, da partição, perdido das designações primeiras, da origem, da dimensão sacralizada e das tradições; espaço cuja identidade estava fraturada [13]

Acompanha a escrita alcidiana a sensação de que, nas décadas de 1960 e 1970, Deus ladeava as nações tidas como ícones da Modernidade, os países desenvolvidos, conceito que emergiu na década de 1940, mas somente em meados da década de 1950 chegava ao Brasil, pelo nacional-desenvolvimentismo. Um estranhamento nos acompanha na leitura do excerto: por que José Alcides comparou a França, a Itália, a Holanda, o Japão e a Rússia com o Ceará e não com o Brasil? Talvez, para ele, a maldição do Ceará fora pronunciada pelo curso que começava a tomar o Brasil, ao se espelhar nos modelos europeus, asiáticos, como também nos de outro país cujo nome não ousou pronunciar – espaço para ele odioso desde a sua participação no Partido Comunista Brasileiro, do qual inclusive tinha desprezo pela língua – os Estados Unidos da América.

Ainda, em outros momentos da Trilogia da Maldição, o autor produziu duas imagens do tempo, que retomariam novamente os significados de Deus como relacionado ao progresso e do Diabo, à regressão. O intento malfadado de Padre Tibúrcio era reinserir o espaço na temporalidade divina, para que a aldeia progredisse. Para isso acontecer, eram necessários a oração, o jejum e a rendição do homem: “Tudo que houvesse de ruim aqui no Alto tem que ser removido, extirpado, para o lugar prosperar”. [14] Por outro lado, quando o Diabo estava à solta nas figuras do dragão apocalíptico e dos verdes abutres da colina, ou mesmo nos momentos em que Deus decidia baixar seu braço esquerdo no povoado, José Alcides aludiu ao movimento regressivo do tempo.

Como cenário destas duas temporalidades, José Alcides escolheu a Aldeia de Alto dos Angicos de São Francisco do Estreito, povoado onde nascera no interior do Ceará. Tratamos de tentar demonstrar que a escrita alcidiana na Trilogia da Maldição foi produzida com base na sensação de que o mundo do progresso parecia diabolizar os espaços de si, as referências da infância no interior do Ceará. Seu projeto artístico manifesta-se no outro do presente em que vive, àquilo que estaria em crise em virtude da ação destrutiva do tempo, dos apocalipses provocados pela Modernidade e pela modernização no espaço sertanejo. Com a sensação de que perdera a noção do ser, afundou em um eu fragmentado, onde se misturam e se contrapõem a identidade pessoal, vista no espaço da infância, e a nova identidade nacional. Seu intento pareceu fundar-se num medo, de que tudo mude e de que suas memórias se desvaneçam e deixem de fazer parte do tempo, de que a Modernidade chegue ao Ceará e, mais amplamente, no Nordeste. E nesse ponto ele não está isolado.

Os anos de 1950 e 1960 foram singulares no modo de simbolização do Ceará pelo compartilhado acento em produzir a crise das visibilidades e dizibilidades do espaço. Com os fluxos modernizadores invadindo e fragmentando as discursividades do sertão, acreditou-se que estaria próximo o último dia das imagens da seca, da pobreza, da miséria e da fome. Foram anunciadas, também, a extinção do cangaço, a precariedade do fanatismo, a morte dos coronéis. Ao sertão restaria apenas um último fôlego, rápido, entre as ações que prometiam anoitecê-lo. Despojado da imagem de atraso, dizia-se que o Ceará se transformara num espaço por excelência da indústria e da urbanidade; que as palavras para lhe falar não eram tão-somente dos pedidos de ajuda, mas as auspiciosas letras da modernização.

A cidade e a indústria, no entanto, não foram temas unânimes sobre o Ceará desse período. Do outro lado da batalha dos sentidos, os soldados armavam uma nova cruzada católica e as sentinelas do Regionalismo Tradicionalista montavam seus postos, a fim de enunciar o sertão e, assim, conservar as velhas simbologias. O catolicismo e os literatos regionalistas atualizavam as antigas imagens do Ceará perante os discursos modernizadores, ressaltando, para isso, o vínculo entre identidade e tradição, em dizeres que se propunham fazer mais amena a passagem entre os tempos do atraso e as temporalidades do desenvolvimento.

Modernismos literários em defesa de antigas imagens, o catolicismo em busca de novos discursos; economistas, agrônomos, folcloristas e órgãos governamentais, todos unidos a fim atribuir e conservar nomes para o Ceará, discursos que fabricavam modernidades e tradicionalismos para o espaço. Lados tensionados disputando os poderes das falas. Páginas de jornais, de poemas, de romances, discursos vinculados à SUDENE, ao catolicismo, ou ainda, às publicações literárias regionalistas, que pareciam enunciar espacialidades diferentes, em que o Ceará era, para alguns, atrasado; para outros, modernizado; seco e industrial; místico e estatístico; sertanejo e urbano; do passado e do futuro; mônadas ambíguas ecoando os conflitos das temporalidades das quais José Alcides Pinto participa e com as quais elabora sua escrita fantástica.[15]

Esta história não tem um ponto de partida muito claro, pois fala de escritas, traduções, identidades e crises, palavras que fogem a demarcações muito precisas no tempo. Escolhemos, contudo, para compreender as perspectivas geridas entre as modernizações e modernidades que atravessavam José Alcides Pinto nas décadas de 1950 e 1960, fazer um recuo, para melhor situar um ponto de ruptura nos modos de fabricar o espaço: quando no Ceará emergiu um temor ao moderno? Quando se buscou elaborar signos que marcassem o espaço que soçobrava ante as descontinuidades da Nação brasileira? Este percurso, no entanto, segue os passos errantes, um vagar que não caminha por linhas retas, mas pelas sendas das temporalidades; uma trama, que, como todas, conexa, mas igualmente dispersa, cheia de encontros e divergências, de pontos de coesão e traçados partidos.


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II. A EMERGÊNCIA DA ESCRITA FANTÁSTICA SOBRE O CEARÁ EM JOSÉ ALCIDES PINTO

A relação entre o fantástico e o espaço cearense não emergiu com José Alcides Pinto na década de 1960. Muito menos foi estabelecida no interior de uma cultura que poderia ser chamada de sertaneja; pelo contrário, é externa a esta.[16] O fantástico irrompe como noção para pensar o sertanejo no momento em que um conjunto de intelectuais estabeleceu uma interdição aos símbolos que foram cristalizadossobre o sertão; é uma interdição à medida que o sertanejo foi localizado como possuidor de uma racionalidade outra, uma alteridade dentro dos regimes de verdade que estabelecem o que é possível e impossível. Ao que parece, foi fruto de um discurso citadino e cientificista, ao final do Oitocentos, que pretendeu dar sentido às multidões de migrantes que chegavam a Fortaleza fugindo da seca de 1877-9;[17] escritores associados, na literatura, ao naturalismo e às análises fundamentadas no determinismo racial e mesológico do antigo norte, para os quais o fantástico era a própria expressão da celeridade sertaneja. Foi em relação a seca que, em 1890, no romance A Fome, o farmacêutico Rodolfo Teófilo descreveu uma população sertaneja acometida por “delírios famélicos”, pela constante alucinação que sofriam em virtude da fome.[18]

No início do século XX, talvez a obra que mais tenha servido como referencial para a cristalização do delirante tratava do sertão da Bahia. Em Os Sertões, de Euclides da Cunha, o fanático com fundo nos movimentos do milenarismo pareceu finalmente ter sido inscrito nos índices discursivos sobre a região das secas como elemento fantástico;[19] noção que pareceu se repetir para compreender o Caldeirão, um dos objetos da discussão de Djacir de Menezes, em O Outro Nordeste, que, como Os Sertões, tentou delimitar os aspectos referentes ao meio e à biologia que determinariam o caráter atípico da psicologia sertaneja.[20] Esse tema errante ainda passou por Graciliano Ramos, especialmente em Infância, com as descrições de sua mãe, que, ao ler um poema de cordel sobre o fim do mundo, pôs-se a tremer de medo.[21] Ascéticos, fanáticos, milenaristas, escatológicos, a figura dos delirantes sertanejos enternecia os inventores do espaço. Ainda, o folclore, especialmente em Câmara Cascudo e na literatura de cordel, além das personagens atormentadas com o fim dos dias, um universo de fabulações percorreriam o Nordeste, as longas disputas entre os sertanejos e o Diabo e a miríade de modos de pactuar com ele ou enganá-lo, os milagres de Padre Cícero e Frei Damião, o retorno de São Sebastião, os Doze Pares de França, o gigante Ferrabrás, seres que compõem uma mitologia nordestina que, como já referido, bela e morta em expressão e explicação sobre os sertões.[22]

Um paradoxo, contudo, separa a forma como esses desatinos sertanejos foram elaborados, entre os escritores apontados há pouco, e a escrita fantástica de José Alcides Pinto. Em Euclides da Cunha e Djacir de Menezes, esse é um elemento que faz parte dos regimes de realidade sobre o sertão, espaços em que o delírio ganhou efeitos de identidade, pois é apropriado à medida que o autor/narrador estabelece um abismo entre aquilo que compreende como verdade e essas matérias que diz retirar dos cotidianos que analisa; o fantástico adentra o campo do cientifico para com isso ser afirmado como delírio, loucura, como marca que define os modos de pensar sertanejo. Dito de forma diferente, enquanto faziam o seu registro construir os sertanejos que viveriam num universo fantástico, em delírios religiosos e supersticiosos, esses autores escreviam como representantes da ciência, ou como preferia Djacir de Menezes, dos indivíduos da civilização; sertanejos que eram então vistos e ditos como vítimas dos estios e que, da mesma forma, seriam secos para a razão moderna; seres imersos no sono de Goya, sem raciocínio, e com especial tendência à loucura, à superstição, ao fanatismo e à violência.

Guimarães Rosa abriu na literatura sobre o sertão a possibilidade, em que as regras desse mundo fantástico não serviriam somente para identificá-lo, assim como para ler as temporalidades que o transpassa. O fantástico torna-se a própria vontade de dar razão ao que antes estaria restrito ao delírio, à margem de uma dita história e da civilização, transformando-o em categorias pertinentes para a compreensão do tempo e da destruição de complexos culturais e linguísticos; os signos percebidos como próximos da morte aparecem como sábios tradutores e críticos da ovacionada Modernidade, servem para ler o apocalipse dos códigos do sertão ante as modernidades que os destituía de sentido.[23] Pelo menos nesse aspecto, de modo semelhante a Guimarães Rosa[24], José Alcides rompeu a distância entre o autor da civilização e o fantástico tão comum aos escritos de tendência mais naturalista. Em vez de porta-voz da ciência que descortinaria o universo determinado pela natureza e a raça dos “inconscientes”sertanejos, José Alcides preferiu ser representante da vertigem, da loucura, do fantástico. Além do mais, o fantástico elaborado pelos autores citados significou a afirmação de uma interpretação que se punha favorável à modernização do espaço. Desse modo, enquanto José Alcides ainda marcava o sertão como pré-moderno, sua escrita fantástica inventava mais uma das dimensões do medo do moderno que circulava entre os discursos sobre o Ceará nas décadas de 1950 e 1960, a que Todorov já fez referência, o medo de perder o fantástico[25], de que a Modernidade tornasse o lugar em um espaço acinzentado, desencantado, em virtude da ciência, da Matemática e da indústria.

No período em que José Alcides elaborou sua escrita, o efeito de identidade que o fantástico possuía sobre o sertão, nas escritas dos membros da agremiação Clã, desde a década de 1940, era obliterado dos discursos sobre o Ceará. Na produção da nostalgia do espaço infância, os escritores do Clã fabricaram o Ceará como um espaço de natureza mais amena, das festas, da celebração, da tradição. Com os autores do Clã, entretanto, José Alcides aprendia a olhar o espaço pelo Regionalismo Tradicionalista, assimilando a ideia de que os símbolos do sertão declinavam com a cidade, de que os cenários de suas escrituras eram precários e doentes, de que os signos da tradição viviam ameaçados de serem destruídos pelos fluxos modernizadores; símbolos enunciados como transitórios, mas preservados pelo esforço militante e memorativo do intelectual regionalista. Dizer para conservar, narrar para manter – é a luta das palavras passadistas contra a emergência de novas identidades. A retomada por José Alcides dos aspectos formulados como fantásticos sobre o Nordeste, contudo, não significou a tentativa e expressão de uma identidade regional, sua escrita fantástica pretendeu ser também alegórica, na qual, ao mesmo tempo em que retomava elementos que acreditava mortos nas racionalidades sertanejas, usava-os como meios para discutir a própria modernização do espaço e a crise das sociabilidades tradicionais.

A palavra alegoria veio do grego e significa, literalmente, dizer outro (allós – outro, agourein – falar). Para José Alcides, combinar o fantástico com o alegórico era a possibilidade de recriar o Ceará em suas obras, fazendo dele a alteridade do espaço ficcionado pelos discursos modernizadores nas décadas de 1950 e 1960. O conceito, no entanto, não era retomado pelo autor tal como pensado entre os retóricos gregos e romanos clássicos, quando estivera ao lado das figuras de linguagem como subcategoria da metáfora, em sua forma estendida, usada unicamente para florear e explicar teses na retórica; nem também se voltava para a alegoria à maneira como fora pensada no Medievo como procedimento exegético que ultrapassava os sentidos figurativos das Escrituras, de modo a supostamente atingir a real mensagem divina subjacente ao texto. Fazia uso da alegoria ideada como estética da crise, da sensação de transitoriedade, da ruína, da precariedade, da condição humana malfadada e incompleta; esse que, segundo Walter Benjamin, emergiu no sublunar da Modernidade barroca, ou, ainda, nos conflitos entre Charles Baudelaire – de quem José Alcides era leitor e admirador – e o romantismo, exercícios poéticos em que o tropo se tornou expressão das incertezas sobre a phýsis, logo, opondo-se ao símbolo, à identidade. [26]

José Alcides era participante de uma geração de artistas enunciadores de que os símbolos que produziram os territórios do Brasil estavam à beira do abismo, sem ter mais suporte nos discursos, nem no sublunar. A alegoria nos anos de 1960 nascia da percepção de que, no século XX, os dispositivos de nacionalidades estavam saturados e confusos, de que a unidade e a totalidade que o símbolo almejava se tornaram impossíveis. Entender o Brasil significava passar da catequese jesuítica ao Concílio de Vaticano II, da província lusitana à estadunidense subdesenvolvida, do patriarcalismo aos parques industriais; território que já fora objeto das discursividades românticas, dos determinismos raciais e mesológicos, dos folclores, dos tradicionalismos e saudosismos, dos desenvolvimentismos. Além do mais, desde a Semana de Arte Moderna, com as vanguardas artísticas, as unidades de sentido claudicavam, despedaçavam-se entre futuristas, dadaístas, surrealistas, concretistas etc. A explosão alegórica provinha de artistas fartos com a diversidade das falas sobre o Brasil, enunciando o eclipsar das velhas matérias de expressão. Ela começava a funcionar na música e no cinema tropicalista, na poesia sobre a decepção com a esquerda, de Ferreira Gullar, nos romances acerca da crise da identidade cearense, de José Alcides Pinto.[27]


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[1] Sobre a noção de polifonia no romance, ver: BAKTHIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética: a teoria do romance. 5.ed. São Paulo:Annablume, 2002.
[2] Expressão usada por José Alcides Pinto ao referir-se ao escritor cearense Oliveira Paiva, cf.: PINTO, José Alcides. “Os contos de Oliveira Paiva”. In.:Idem. Política da Arte. Fortaleza: [s/Ed], [s/d]. p. 29.
[3] No tocante ao conceito de lugar social onde se realiza a operação historiográfica, ver: CERTEAU, Michel de. “A Operação Historiográfica”. In: Idem. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 65-121. Acerca do uso desse mesmo conceito para a compreensão da escrita literária, ver: MAINGUENEAU, Dominique. O Contexto da Obra Literária. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.18-9.
[4]  PINTO, José Alcides. “Noções de Artes e Poesia”. In:Idem. Poemas Escolhidos, v II. São Paulo: GRD, 2006.
[5] PINTO, José Alcides. “Os Catadores de Siris”. In:Idem, ibidem.
[6]ENTREVISTA: O Divino Maldito. O Povo, Fortaleza-Ce. 02 de maio 1982. p. 12
[7]Quanto aos conceitos de matérias e formas de expressão, ver: ROLNIK, Suely.Op.cit. DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
[8] PINTO, José Alcides. “Os Verdes Abutres da Colina”. In: Idem.Trilogia da Maldição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. p. 265.
[9] Idem, ibidem.p. 266.
[10]  Sobre espaço liso, ver DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. V.5. São Paulo: Ed. 34. 1997.
[11] PINTO, José Alcides. “O Dragão”. In: Idem.Trilogia da Maldição. Rio de Janeiro:Topbooks, 1999. p. 64.
[12] PINTO, José Alcides. “Cantos de Lúcifer”. In:Idem.. Poemas Escolhidos. São Paulo: GRD, 2006.
[13]Sobre as noções de simbólico e diabólico, ver: RANCIÈRE, Jacques. Os Nomes da História: ensaios de poética do saber. São Paulo: EDUC/Pontes, 1994. p. 75. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 32.
[14] PINTO, José Alcides. “O Dragão”. In: Idem..Trilogia da Maldição. Rio de Janeiro:Topbooks, 1999. p. 106.
[15] Acerca da noção de produção das temporalidades e disputas por dizer os tempos, ver: KOSELLCK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006. p. 21-40. Sobre o conceito de mônada, ver: DELEUZE, Gilles. “A percepção nas Dobras”. In: Idem. A Dobra: Leibniz e o Barroco. Campinas-SP: Papirus, 1991. p. 129-50.
[16] Para essa discussão, retomamos a teorização sobre cultura popular, ver: CERTEAU, Michel de. “A Beleza do Morto”. In: Idem. A Cultura no Plural. Campinas: Papirus, 1995. Idem. “Culturas Populares”. In: Idem. A invenção do cotidiano: 1.artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. BURKE, Peter.  Cultura Popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[17] Sobre o discurso da seca, ver: ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz..Falas e Astúcias e de Angústias: a seca no imaginário nordestino – do problema à solução (1877-1922). São Paulo: dissertação (mestrado) em História, UNICAMP, 1988. Idem. “Palavras que calcinam, palavras que dominam: a invenção da seca do  Nordeste”. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/ Marco Zero, vol. 15, n° 28, 1995. BARBOSA, Ivone Cordeiro. Op.cit.. NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: ReluméDumará; Fortaleza-CE, Secretaria de Cultura e Desporto, 2000. Idem. Imagens do Nordeste: a construção da memória regional. Fortaleza-CE, SECULT, 1994. Idem. SOUZA, Simone de.(org.). Seca. Fortaleza-CE, Edições Demócrito Rocha, 2002.
[18] Cf. TEÓFILO, Rodolfo. A Fome. Fortaleza – CE: Edições Demócrito Rocha, 2002. p. 77.
[19]Cf: CUNHA, Euclides da.Os Sertões.Fortaleza-Ce: ABC, 2002.
[20] Cf. MENEZES, Djacir. Op.cit.
[21] Cf. RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 1977.
[22] Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. 18. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
[23] Cf. ROSA, Guimarães. Grandes Sertões: Veredas. Rio Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
[24]Cf: Idem, ibidem.
[25] Para a discussão sobre a alegoria produzida por meio do medo de perda do fantástico, ver: TODOROV, Tzvetan. Op. cit. p. 30-5.
[26] Acerca da história do conceito de alegoria, ver: HANSEN, João Adolfo.  Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Esdras; Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2006.p. 7-137; ORLANDO, Fonseca. Op. cit. 13-110.  Sobre o conceito de alegoria e símbolo na teorização de Walter Benjamin sobre o Barraco, Charles Baudelaire e o Romantismo, ver: BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.181-94. Idem. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo.. São Paulo, Brasiliense, 1984. p. 185-271. Idem. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Iluminuras, 1993. p. 48-70.
[27] No tocante a alegoria e a crise dos dispositivos de nacionalidade no Brasil de 1960, ver: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. O Engenho Anti-Moderno: a invenção do Nordeste e outras artes. Campinas-SP: Unicamp, tese (doutorado) em História, 1993.  p. 357-365.

FRANCISCO FRANCIJÉSI FIRMINO é historiador, graduado pela Universidade Estadual do Ceará, em Limoeiro do Norte [Fafidam/UECE], e mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Trabalhou como professor substituto do curso de História da UECE e atualmente é professor efetivo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Desenvolve pesquisas sobre temáticas relacionadas a literatura, historiografia, construções identitárias e espaço. É autor de Alegorias da Maldição: a escrita fantástica de José Alcides Pinto e o Ceará, 1960-80 [Edições Demócrito Rocha, 2012].

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