[Ilustração, de Karlson Gracie, no livro Alegorias da maldição] |
I. JOSÉ ALCIDES PINTO E O MEDO DA MODERNIZAÇÃO DO ESPAÇO
No ano em que José Alcides Pinto retornou ao Ceará, em 1957,
não somente percebera que muito havia mudado no lugar de onde saíra. Iniciava
ali também uma ruptura no seu modo de ser escritor. Ao começar a redação da Trilogia da Maldição, de romances em vez
de poemas, abriu-se às prosas do Ceará e, como alguém que descobre palavras
novas em livros antigos, dava início ao diálogo com tantos outros discursos que
pretendiam fabricar o espaço. Marcou ali seu encontro com a criação de
romances, com a narrativa, o prosaico; abriu em sua literatura uma clareira
onde uma polifonia de modos de conceber e representar o Ceará floresciam e eram
enredados pela escrita em sua tradução do espaço e do tempo.[1]
Mesmo sendo a Trilogia da Maldição
composta de romances considerados fantásticos, acreditamos que com esses
escritos o autor mostrou o seu “dedo do cronista”[2],
para apontar os lugares onde produzia sua obra, assim como os espaços ocupados
por ela em meio aos regimes de verossimilhança e de realidade sobre o Ceará.
Foi por meio dessa narrativa que intentamos neste capítulo tramar as conexões
entre a autoria e as temporalidades que a perpassam.[3]
Já em seus primeiros livros de poemas, o prosaico aparecia,
entretanto, não para se fazer prosador, mas para se conceber como poeta de
prosas, de temas pequenos e de vida apequenada, amesquinhado pela morte que lhe
aparecia à espreita em seu dia a dia, um poeta de vida sem rimas, cujas regras
que separam a grande beleza do poema dos pequenos interesses da narrativa eram
contestadas. Poeta que dançou para a solidão, para os gatos no carnaval de
Olinda, que via sua espectral irmã, então recentemente morta, pelos guetos de
uma existência sem glória, e de um romantismo tenebroso, do absurdo.[4]
Que fez, ainda, o que se chamou de poema social de esquerda, escrevendo sobre
os meninos nos mangues do Recife, na tentativa de tornar-se, nas palavras do
autor, “poeta-popular”, assumindo semelhanças com a forma do cordel.[5]
Era pelo poema que lhe interessavam os diálogos com o surrealismo, o
concretismo e uma poesia considerada maldita, ao modo de Baudelaire e Rimbaud.
Quando retornara ao Ceará, depois de passado pelo Recife e Rio de Janeiro,
outro contágio parece ainda ter se justaposto a estes: o Regionalismo
Tradicionalista.
Os romances que compõem Trilogia
da Maldição, como dissera José Alcides Pinto, “são de tipo regionalista, embora meu regional seja
‘regional-transfigurado’”.[6]Transfigurado
justamente por não se conter nas referências comuns a essa literatura, por ser
empreendido em meio à justaposição dos diálogos que já havia feito ao escrever
poemas, por não se tratar mais de uma escrita que assumisse o cunho realista e
nostálgico, mas uma narrativa classificada como fantástica sobre o Ceará. José
Alcides Pinto trabalhou com o embaralhamento de variadas propostas artísticas
para a literatura, e foi desse modo que se fez tradutor dos lugares de sua
escrita, dos cotidianos de palavras que o atravessavam como matérias de sua
época e eram transformados em formas de sua poética.[7]
O que desse cotidiano de palavras e não ditos, porém, ganhou
a narrativa e foi produzido pelo enredo de José Alcides Pinto ao chegar ao
Ceará? A primeira imagem que compõe isso que acreditamos ser o portal para
compreendermos José Alcides Pinto está presente ao final do segundo romance da Trilogia da Maldição – Os Verdes Abutres da
Colina. Num “dia de domingo, pelas quatro da
tarde, no nascente [...] se avistava um cinturão amarelo enlaçando os cimos da
Ibiapaba. E vinha caminhando e crescendo rapidamente em direção ao povoado”[8]de Alto dos
Angicos de São Francisco do Estreito.
Do lado do poente, das abas da serra do Mucuripe,
partiram igualmente os verdes abutres da colina precedidos de sua grande
ninhada [...] rugidores e ferozes como jamais se viu. Aproximavam com a mesma
velocidade que a formação esquisita, avançando obstinadamente como se medissem
as distâncias para se encontrarem sobre povoado ao mesmo tempo. Era o fim de
tudo[9].
De oeste a leste no Ceará, se poderia ver o avanço dos
abutres verdes e da massa de ar amarela. Quando os dois chegaram em Alto dos
Angicos de São Francisco do Estreito, quando se colidiram nos céus daquele
fragmento do Estado, segundo as profecias, primeiro se formaria um sorvedouro
do tamanho da aldeia, e depois, a partir dele, começaria a consumir todo o
resto do Ceará. Ao final, existiria um deserto, um lugar limpo e despovoado, um
espaço liso[10], um nada;
somente terras e a imensidão. José Alcides, ao conceber suas imagens
apocalípticas, não somente o faz a fim de retomar e fazer funcionar em sua
narrativa elementos que possuem efeitos de identidade sobre o Ceará, como é o
caso do pensamento escatológico. Ele retrama essa imagens de Ceará, entretanto,
com o intuito de torná-las alegorias em sua tradução do tempo e do espaço.
Na Trilogia da Maldição, José Alcides afeiçoava a
noção de sagrado à de símbolo, à de identidade, como fica notório numa das
frases de O Dragão dita por Padre Tibúrcio, o protagonista dos livros:
“oh, como o Deus da França, da Itália, da Holanda, do Japão, mesmo o da Rússia,
parece ser um só. Em todas as paragens, em todo mundo! Mas o do Ceará... o Deus
do Ceará, francamente, eu não sei bem qual é”. [11]
Quando se refere a Deus na Trilogia da
Maldição, não remete ao transcendente que julgou encontrar ao final de seus
Cantos de Lúcifer.[12]
Reporta-se a um deus prosaico que dá ordem e sentido ao social; fala de um deus
barroco, cuja agência é vista pela condição terrena, no cotidiano, pelo
progresso e pela redenção ou destruição da humanidade. Deus, etimologicamente,
é o símbolo, o movimento ordenador, que salva o indivíduo da dispersão de
verdades, o uno e indivisível, o princípio e o fim, o divino que remonta aos
significados primeiros do espaço, as suas significações plenas, com a retidão,
a linearidade e o progresso. José Alcides, entretanto, expressava em sua
trilogia a maldição em que o Ceará está imerso, lugar diabólico, da dispersão,
da destruição, da ira divina, da desordem, da partição, perdido das designações
primeiras, da origem, da dimensão sacralizada e das tradições; espaço cuja
identidade estava fraturada [13]
Acompanha a escrita alcidiana a sensação de que, nas décadas
de 1960 e 1970, Deus ladeava as nações tidas como ícones da Modernidade, os
países desenvolvidos, conceito que emergiu na década de 1940, mas somente em
meados da década de 1950 chegava ao Brasil, pelo nacional-desenvolvimentismo.
Um estranhamento nos acompanha na leitura do excerto: por que José Alcides
comparou a França, a Itália, a Holanda, o Japão e a Rússia com o Ceará e não
com o Brasil? Talvez, para ele, a maldição do Ceará fora pronunciada pelo curso
que começava a tomar o Brasil, ao se espelhar nos modelos europeus, asiáticos,
como também nos de outro país cujo nome não ousou pronunciar – espaço para ele
odioso desde a sua participação no Partido Comunista Brasileiro, do qual
inclusive tinha desprezo pela língua – os Estados Unidos da América.
Ainda, em outros
momentos da Trilogia da Maldição, o
autor produziu duas imagens do tempo, que retomariam novamente os significados
de Deus como relacionado ao progresso e do Diabo, à regressão. O intento
malfadado de Padre Tibúrcio era reinserir o espaço na temporalidade divina,
para que a aldeia progredisse. Para isso acontecer, eram necessários a oração,
o jejum e a rendição do homem: “Tudo que houvesse de ruim aqui no Alto tem que
ser removido, extirpado, para o lugar prosperar”. [14] Por
outro lado, quando o Diabo estava à solta nas figuras do dragão apocalíptico e
dos verdes abutres da colina, ou mesmo nos momentos em que Deus decidia baixar
seu braço esquerdo no povoado, José Alcides aludiu ao movimento regressivo do
tempo.
Como cenário destas duas
temporalidades, José Alcides escolheu a Aldeia de Alto dos Angicos de São
Francisco do Estreito, povoado onde nascera no interior do Ceará. Tratamos de
tentar demonstrar que a escrita alcidiana na Trilogia da Maldição foi produzida com base na sensação de que o
mundo do progresso parecia diabolizar os espaços de si, as referências da
infância no interior do Ceará. Seu projeto artístico manifesta-se no outro do
presente em que vive, àquilo que estaria em crise em virtude da ação destrutiva
do tempo, dos apocalipses provocados pela Modernidade e pela modernização no
espaço sertanejo. Com a sensação de que perdera a noção do ser, afundou em um
eu fragmentado, onde se misturam e se contrapõem a identidade pessoal, vista no
espaço da infância, e a nova identidade nacional. Seu intento pareceu fundar-se
num medo, de que tudo mude e de que suas memórias se desvaneçam e deixem de
fazer parte do tempo, de que a Modernidade chegue ao Ceará e, mais amplamente,
no Nordeste. E nesse ponto ele não está isolado.
Os anos de 1950 e 1960 foram singulares no modo de
simbolização do Ceará pelo compartilhado acento em produzir a crise das
visibilidades e dizibilidades do espaço. Com os fluxos modernizadores invadindo
e fragmentando as discursividades do sertão, acreditou-se que estaria próximo o
último dia das imagens da seca, da pobreza, da miséria e da fome. Foram
anunciadas, também, a extinção do cangaço, a precariedade do fanatismo, a morte
dos coronéis. Ao sertão restaria apenas um último fôlego, rápido, entre as
ações que prometiam anoitecê-lo. Despojado da imagem de atraso, dizia-se que o
Ceará se transformara num espaço por excelência da indústria e da urbanidade;
que as palavras para lhe falar não eram tão-somente dos pedidos de ajuda, mas
as auspiciosas letras da modernização.
A cidade e a indústria, no entanto, não foram temas unânimes
sobre o Ceará desse período. Do outro lado da batalha dos sentidos, os soldados
armavam uma nova cruzada católica e as sentinelas do Regionalismo
Tradicionalista montavam seus postos, a fim de enunciar o sertão e, assim,
conservar as velhas simbologias. O catolicismo e os literatos regionalistas
atualizavam as antigas imagens do Ceará perante os discursos modernizadores,
ressaltando, para isso, o vínculo entre identidade e tradição, em dizeres que
se propunham fazer mais amena a passagem entre os tempos do atraso e as
temporalidades do desenvolvimento.
Modernismos literários em defesa de antigas imagens, o
catolicismo em busca de novos discursos; economistas, agrônomos, folcloristas e
órgãos governamentais, todos unidos a fim atribuir e conservar nomes para o
Ceará, discursos que fabricavam modernidades e tradicionalismos para o espaço.
Lados tensionados disputando os poderes das falas. Páginas de jornais, de
poemas, de romances, discursos vinculados à SUDENE, ao catolicismo, ou ainda,
às publicações literárias regionalistas, que pareciam enunciar espacialidades
diferentes, em que o Ceará era, para alguns, atrasado; para outros,
modernizado; seco e industrial; místico e estatístico; sertanejo e urbano; do
passado e do futuro; mônadas ambíguas ecoando os conflitos das temporalidades
das quais José Alcides Pinto participa e com as quais elabora sua escrita
fantástica.[15]
Esta história não tem um ponto de partida muito claro, pois
fala de escritas, traduções, identidades e crises, palavras que fogem a
demarcações muito precisas no tempo. Escolhemos, contudo, para compreender as
perspectivas geridas entre as modernizações e modernidades que atravessavam
José Alcides Pinto nas décadas de 1950 e 1960, fazer um recuo, para melhor
situar um ponto de ruptura nos modos de fabricar o espaço: quando no Ceará
emergiu um temor ao moderno? Quando se buscou elaborar signos que marcassem o
espaço que soçobrava ante as descontinuidades da Nação brasileira? Este
percurso, no entanto, segue os passos errantes, um vagar que não caminha por
linhas retas, mas pelas sendas das temporalidades; uma trama, que, como todas,
conexa, mas igualmente dispersa, cheia de encontros e divergências, de pontos
de coesão e traçados partidos.
y
II. A EMERGÊNCIA DA ESCRITA FANTÁSTICA SOBRE O CEARÁ EM JOSÉ
ALCIDES PINTO
A relação entre o fantástico e o espaço cearense não emergiu
com José Alcides Pinto na década de 1960. Muito menos foi estabelecida no
interior de uma cultura que poderia ser chamada de sertaneja; pelo contrário, é
externa a esta.[16]
O fantástico irrompe como noção para pensar o sertanejo no momento em que um
conjunto de intelectuais estabeleceu uma interdição aos símbolos que foram
cristalizadossobre o sertão; é uma interdição à medida que o sertanejo foi
localizado como possuidor de uma racionalidade outra, uma alteridade dentro dos
regimes de verdade que estabelecem o que é possível e impossível. Ao que
parece, foi fruto de um discurso citadino e cientificista, ao final do
Oitocentos, que pretendeu dar sentido às multidões de migrantes que chegavam a
Fortaleza fugindo da seca de 1877-9;[17]
escritores associados, na literatura, ao naturalismo e às análises
fundamentadas no determinismo racial e mesológico do antigo norte, para os
quais o fantástico era a própria expressão da celeridade sertaneja. Foi em
relação a seca que, em 1890, no romance A
Fome, o farmacêutico Rodolfo Teófilo descreveu uma população sertaneja
acometida por “delírios famélicos”, pela constante alucinação que sofriam em
virtude da fome.[18]
No início do século XX, talvez a obra que mais tenha servido
como referencial para a cristalização do delirante tratava do sertão da Bahia.
Em Os Sertões, de Euclides da Cunha,
o fanático com fundo nos movimentos do milenarismo pareceu finalmente ter sido
inscrito nos índices discursivos sobre a região das secas como elemento
fantástico;[19]
noção que pareceu se repetir para compreender o Caldeirão, um dos objetos da
discussão de Djacir de Menezes, em O
Outro Nordeste, que, como Os Sertões,
tentou delimitar os aspectos referentes ao meio e à biologia que determinariam
o caráter atípico da psicologia sertaneja.[20] Esse
tema errante ainda passou por Graciliano Ramos, especialmente em Infância, com as descrições de sua mãe,
que, ao ler um poema de cordel sobre o fim do mundo, pôs-se a tremer de medo.[21]
Ascéticos, fanáticos, milenaristas, escatológicos, a figura dos delirantes
sertanejos enternecia os inventores do espaço. Ainda, o folclore, especialmente
em Câmara Cascudo e na literatura de cordel, além das personagens atormentadas
com o fim dos dias, um universo de fabulações percorreriam o Nordeste, as
longas disputas entre os sertanejos e o Diabo e a miríade de modos de pactuar
com ele ou enganá-lo, os milagres de Padre Cícero e Frei Damião, o retorno de
São Sebastião, os Doze Pares de França, o gigante Ferrabrás, seres que compõem
uma mitologia nordestina que, como já referido, bela e morta em expressão e
explicação sobre os sertões.[22]
Um paradoxo, contudo, separa a forma como
esses desatinos sertanejos foram elaborados, entre os escritores apontados há
pouco, e a escrita fantástica de José Alcides Pinto. Em Euclides da Cunha e
Djacir de Menezes, esse é um elemento que faz parte dos regimes de realidade
sobre o sertão, espaços em que o delírio ganhou efeitos de identidade, pois é
apropriado à medida que o autor/narrador estabelece um abismo entre aquilo que
compreende como verdade e essas matérias que diz retirar dos cotidianos que
analisa; o fantástico adentra o campo do cientifico para com isso ser afirmado
como delírio, loucura, como marca que define os modos de pensar sertanejo. Dito
de forma diferente, enquanto faziam o seu registro construir os sertanejos que
viveriam num universo fantástico, em delírios religiosos e supersticiosos,
esses autores escreviam como representantes da ciência, ou como preferia Djacir
de Menezes, dos indivíduos da civilização; sertanejos que eram então vistos e
ditos como vítimas dos estios e que, da mesma forma, seriam secos para a razão
moderna; seres imersos no sono de Goya, sem raciocínio, e com especial
tendência à loucura, à superstição, ao fanatismo e à violência.
Guimarães Rosa abriu na literatura sobre
o sertão a possibilidade, em que as regras desse mundo fantástico não serviriam
somente para identificá-lo, assim como para ler as temporalidades que o
transpassa. O fantástico torna-se a própria vontade de dar razão ao que antes
estaria restrito ao delírio, à margem de uma dita história e da civilização,
transformando-o em categorias pertinentes para a compreensão do tempo e da
destruição de complexos culturais e linguísticos; os signos percebidos como
próximos da morte aparecem como sábios tradutores e críticos da ovacionada
Modernidade, servem para ler o apocalipse dos códigos do sertão ante as
modernidades que os destituía de sentido.[23] Pelo menos nesse aspecto, de modo semelhante a Guimarães
Rosa[24], José
Alcides rompeu a distância entre o autor da civilização e o fantástico tão
comum aos escritos de tendência mais naturalista. Em vez de porta-voz da
ciência que descortinaria o universo determinado pela natureza e a raça dos
“inconscientes”sertanejos, José Alcides preferiu ser representante da vertigem,
da loucura, do fantástico. Além do mais, o fantástico elaborado pelos autores citados
significou a afirmação de uma interpretação que se punha favorável à
modernização do espaço. Desse modo, enquanto José Alcides ainda marcava o
sertão como pré-moderno, sua escrita fantástica inventava mais uma das
dimensões do medo do moderno que circulava entre os discursos sobre o Ceará nas
décadas de 1950 e 1960, a que Todorov já fez referência, o medo de perder o
fantástico[25],
de que a Modernidade tornasse o lugar em um espaço acinzentado, desencantado,
em virtude da ciência, da Matemática e da indústria.
No período em que José Alcides elaborou
sua escrita, o efeito de identidade que o fantástico possuía sobre o sertão,
nas escritas dos membros da agremiação Clã, desde a década de 1940, era
obliterado dos discursos sobre o Ceará. Na produção da nostalgia do espaço
infância, os escritores do Clã fabricaram o Ceará como um espaço de natureza
mais amena, das festas, da celebração, da tradição. Com os autores do Clã,
entretanto, José Alcides aprendia a olhar o espaço pelo Regionalismo
Tradicionalista, assimilando a ideia de que os símbolos do sertão declinavam
com a cidade, de que os cenários de suas escrituras eram precários e doentes,
de que os signos da tradição viviam ameaçados de serem destruídos pelos fluxos
modernizadores; símbolos enunciados como transitórios, mas preservados pelo
esforço militante e memorativo do intelectual regionalista. Dizer para
conservar, narrar para manter – é a luta das palavras passadistas contra a
emergência de novas identidades. A retomada por José Alcides dos aspectos formulados
como fantásticos sobre o Nordeste, contudo, não significou a tentativa e
expressão de uma identidade regional, sua escrita fantástica pretendeu ser
também alegórica, na qual, ao mesmo tempo em que retomava elementos que
acreditava mortos nas racionalidades sertanejas, usava-os como meios para
discutir a própria modernização do espaço e a crise das sociabilidades
tradicionais.
A palavra alegoria veio do grego e significa, literalmente,
dizer outro (allós – outro, agourein – falar). Para José Alcides,
combinar o fantástico com o alegórico era a possibilidade de recriar o Ceará em
suas obras, fazendo dele a alteridade do espaço ficcionado pelos discursos
modernizadores nas décadas de 1950 e 1960. O conceito, no entanto, não era
retomado pelo autor tal como pensado entre os retóricos gregos e romanos
clássicos, quando estivera ao lado das figuras de linguagem como subcategoria
da metáfora, em sua forma estendida, usada unicamente para florear e explicar
teses na retórica; nem também se voltava para a alegoria à maneira como fora
pensada no Medievo como procedimento exegético que ultrapassava os sentidos
figurativos das Escrituras, de modo a supostamente atingir a real mensagem
divina subjacente ao texto. Fazia uso da alegoria ideada como estética da crise,
da sensação de transitoriedade, da ruína, da precariedade, da condição humana
malfadada e incompleta; esse que, segundo Walter Benjamin, emergiu no sublunar
da Modernidade barroca, ou, ainda, nos conflitos entre Charles Baudelaire – de
quem José Alcides era leitor e admirador – e o romantismo, exercícios poéticos
em que o tropo se tornou expressão das incertezas sobre a phýsis, logo,
opondo-se ao símbolo, à identidade. [26]
José Alcides era participante de uma geração de artistas
enunciadores de que os símbolos que produziram os territórios do Brasil estavam
à beira do abismo, sem ter mais suporte nos discursos, nem no sublunar. A
alegoria nos anos de 1960 nascia da percepção de que, no século XX, os
dispositivos de nacionalidades estavam saturados e confusos, de que a unidade e
a totalidade que o símbolo almejava se tornaram impossíveis. Entender o Brasil
significava passar da catequese jesuítica ao Concílio de Vaticano II, da
província lusitana à estadunidense subdesenvolvida, do patriarcalismo aos
parques industriais; território que já fora objeto das discursividades
românticas, dos determinismos raciais e mesológicos, dos folclores, dos
tradicionalismos e saudosismos, dos desenvolvimentismos. Além do mais, desde a
Semana de Arte Moderna, com as vanguardas artísticas, as unidades de sentido
claudicavam, despedaçavam-se entre futuristas, dadaístas, surrealistas,
concretistas etc. A explosão alegórica provinha de artistas fartos com a
diversidade das falas sobre o Brasil, enunciando o eclipsar das velhas matérias
de expressão. Ela começava a funcionar na música e no cinema tropicalista, na
poesia sobre a decepção com a esquerda, de Ferreira Gullar, nos romances acerca
da crise da identidade cearense, de José Alcides Pinto.[27]
y
[1] Sobre a noção de polifonia
no romance, ver: BAKTHIN, Mikhail. Questões de Literatura e Estética: a
teoria do romance. 5.ed. São Paulo:Annablume, 2002.
[2] Expressão usada por
José Alcides Pinto ao referir-se ao escritor cearense Oliveira Paiva, cf.:
PINTO, José Alcides. “Os contos de Oliveira Paiva”. In.:Idem. Política da Arte. Fortaleza: [s/Ed],
[s/d]. p. 29.
[3] No tocante ao
conceito de lugar social onde se realiza a operação historiográfica, ver:
CERTEAU, Michel de. “A Operação Historiográfica”. In: Idem. A Escrita da
História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 65-121. Acerca do
uso desse mesmo conceito para a compreensão da escrita literária, ver:
MAINGUENEAU, Dominique. O Contexto da
Obra Literária. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.18-9.
[4] PINTO, José Alcides. “Noções de Artes e
Poesia”. In:Idem.
Poemas Escolhidos, v II. São Paulo: GRD, 2006.
[5] PINTO, José Alcides.
“Os Catadores de Siris”. In:Idem, ibidem.
[6]ENTREVISTA: O Divino
Maldito. O Povo, Fortaleza-Ce. 02 de
maio 1982. p. 12
[7]Quanto aos conceitos
de matérias e formas de expressão, ver: ROLNIK, Suely.Op.cit. DELEUZE, Gilles. Proust
e os Signos. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
[8] PINTO, José Alcides.
“Os Verdes Abutres da Colina”. In: Idem.Trilogia
da Maldição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. p. 265.
[9] Idem, ibidem.p. 266.
[10] Sobre espaço liso, ver DELEUZE, Gilles;
GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. V.5. São Paulo: Ed.
34. 1997.
[11] PINTO, José Alcides.
“O Dragão”. In: Idem.Trilogia da
Maldição. Rio de Janeiro:Topbooks, 1999. p. 64.
[12] PINTO, José Alcides.
“Cantos de Lúcifer”. In:Idem.. Poemas Escolhidos. São Paulo: GRD, 2006.
[13]Sobre as noções de
simbólico e diabólico, ver: RANCIÈRE, Jacques. Os Nomes da História:
ensaios de poética do saber. São Paulo: EDUC/Pontes, 1994. p. 75. ELIADE,
Mircea. O sagrado e o profano. São
Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 32.
[14] PINTO, José Alcides.
“O Dragão”. In: Idem..Trilogia da
Maldição. Rio de Janeiro:Topbooks, 1999. p. 106.
[15] Acerca da noção de
produção das temporalidades e disputas por dizer os tempos, ver: KOSELLCK,
Reinhart. Futuro passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto,
Ed. PUC-Rio, 2006. p. 21-40. Sobre o conceito de mônada, ver: DELEUZE, Gilles.
“A percepção nas Dobras”. In: Idem. A Dobra:
Leibniz e o Barroco. Campinas-SP: Papirus, 1991. p. 129-50.
[16] Para essa discussão,
retomamos a teorização sobre cultura popular, ver: CERTEAU, Michel de. “A
Beleza do Morto”. In: Idem. A Cultura no
Plural. Campinas: Papirus, 1995. Idem. “Culturas Populares”. In: Idem. A invenção do cotidiano: 1.artes de
fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade
Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[17] Sobre o discurso da
seca, ver: ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz..Falas
e Astúcias e de Angústias: a seca no imaginário nordestino – do problema à
solução (1877-1922). São Paulo: dissertação (mestrado) em História, UNICAMP,
1988. Idem. “Palavras que calcinam, palavras que dominam: a invenção da seca
do Nordeste”. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/ Marco Zero, vol.
15, n° 28, 1995. BARBOSA, Ivone Cordeiro. Op.cit..
NEVES, Frederico de Castro. A multidão e
a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro:
ReluméDumará; Fortaleza-CE, Secretaria de Cultura e Desporto, 2000. Idem. Imagens do Nordeste: a construção da
memória regional. Fortaleza-CE, SECULT, 1994. Idem. SOUZA, Simone de.(org.).
Seca. Fortaleza-CE, Edições Demócrito Rocha, 2002.
[18] Cf. TEÓFILO, Rodolfo.
A Fome. Fortaleza – CE: Edições
Demócrito Rocha, 2002. p. 77.
[19]Cf: CUNHA, Euclides
da.Os Sertões.Fortaleza-Ce: ABC,
2002.
[20] Cf. MENEZES, Djacir. Op.cit.
[21] Cf. RAMOS,
Graciliano. Infância. Rio de Janeiro:
Record, 1977.
[22] Cf. CASCUDO, Luís da
Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. 18.
ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
[23] Cf. ROSA, Guimarães. Grandes Sertões: Veredas. Rio Janeiro:
Nova Fronteira, 2006.
[24]Cf: Idem, ibidem.
[25] Para a discussão
sobre a alegoria produzida por meio do medo de perda do fantástico, ver:
TODOROV, Tzvetan. Op. cit. p. 30-5.
[26] Acerca da história do
conceito de alegoria, ver: HANSEN, João Adolfo.
Alegoria: construção e
interpretação da metáfora. São Paulo: Esdras; Campinas-SP: Editora da Unicamp,
2006.p. 7-137; ORLANDO, Fonseca. Op. cit. 13-110. Sobre o conceito de alegoria e símbolo na
teorização de Walter Benjamin sobre o Barraco, Charles Baudelaire e o
Romantismo, ver: BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São
Paulo: Brasiliense, 1984. p.181-94. Idem. Charles Baudelaire: um lírico
no auge do capitalismo.. São Paulo, Brasiliense, 1984. p. 185-271. Idem. O
Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, Iluminuras, 1993. p. 48-70.
[27] No tocante a alegoria
e a crise dos dispositivos de nacionalidade no Brasil de 1960, ver: ALBUQUERQUE
Jr., Durval Muniz. O Engenho
Anti-Moderno: a invenção do Nordeste e outras artes. Campinas-SP: Unicamp,
tese (doutorado) em História, 1993. p.
357-365.
FRANCISCO FRANCIJÉSI FIRMINO é
historiador, graduado pela Universidade Estadual do Ceará, em Limoeiro do Norte
[Fafidam/UECE], e mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Trabalhou como professor substituto do curso de História da UECE e atualmente é
professor efetivo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Desenvolve
pesquisas sobre temáticas relacionadas a literatura, historiografia, construções
identitárias e espaço. É autor de Alegorias
da Maldição: a escrita fantástica de José Alcides Pinto e o Ceará, 1960-80 [Edições
Demócrito Rocha, 2012].