segunda-feira, 8 de junho de 2015

CANTO DE NASCIMENTO [Paula Tavares]



Nascente [Google Images]


Aceso está o fogo
prontas as mãos

o dia parou a sua lenta marcha
de mergulhar na noite.

As mãos criam na água
uma pele nova

panos brancos
uma panela a ferver
mais a faca de cortar

Uma dor fina
a marcar os intervalos de tempo
vinte cabaças de leite
que o vento trabalha manteiga

a lua pousada na pedra de afiar

Uma mulher oferece à noite
o silêncio aberto
de um grito
sem som nem gesto
apenas o silêncio aberto assim ao grito
solto ao intervalo das lágrimas

As velhas desfiam uma lenta memória
que acende a noite de palavras
depois aquecem as mãos de semear fogueiras

Uma mulher arde
no fogo de uma dor fria
igual a todas as dores
maior que todas as dores.
Esta mulher arde
no meio da noite perdida
colhendo o rio

enquanto as crianças dormem
seus pequenos sonhos de leite.

Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
não canta
Abre a boca
e solta os pássaros
que lhe povoam a garganta

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Referência do poema: TAVARES, Paula. Amargos como os frutos: poesia reunida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.


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PAULA TAVARES [1952 | Angola] Nasceu em Huíla, sul de Angola. É historiadora com doutoramento em história e antropologia. Obras: Ritos de passagem [poesia, 1985], O sangue da buganvília [crônicas, 1998], O lago da lua [poesia, 1999], Dizes-me coisas amargas como os frutos [poesia, 2001], Ex-votos [poesia, 2003], A cabeça de Salomé [crônicas, 2004], Os olhos do homem que chorava no rio [contos, 2005- em parceria com Jorge Marmelo], Manual para amantes despudorados [poesia, 2007], Como veias finas na terra [poesia, 2010]. Amargos como os frutos: poesia reunida, publicado no Brasil em 2011 [editora Pallas], reúne sua obra poética até então.



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