Carnaubal, de Sávio Sousa |
I.
CONFISSÕES PRIMEIRAS
Nasci,
cresci e vivo numa região do interior do Ceará – o Vale do Jaguaribe. Habito
esse lugar. Limoeiro do
Norte, a cidade onde nasci, dentre algumas identidades que carrega (que a fazem
carregar os discursos sobre ela), está a de ser terra de poetas, “a cidade
brasileira com mais poeta ‘per capita’”, daí o dito de que “quem não é poeta em
Limoeiro, de Limoeiro não é.” [LIMA, 2012]
Se essa
identidade tem fundamento nas ciências demográficas, nos números dos censos,
etc., isto não posso dizer – o saber que tenho não alcança a tanto. Resta aos
escreventes limoeirenses a sina de conviver com essa identidade – bonita, não
resta dúvida, tão mais idílica que outras que, em tempos recentes, se agarraram
ao nome do lugar.
E a essa
identidade se atrelam outras, cada qual portadora de consideráveis (assim
entendo) implicações. Uma dessas identidades correlatas, assim digamos, é
aquela que associa a escrita poética do lugar Limoeiro ao telúrico, ao apego às
coisas da terra. Mais uma bonita identidade, não resta dúvida; carregada do
cheiro da terra, da vida do chão, segundo a definição dos dicionários.
Nunca havia
atentado para isto, para estas identificações em relação ao meu lugar; nunca havia sentido a necessidade
de pensá-las. Até que fui colocado, contraposto, diretamente, a elas, parecendo
assim confirmar-se aquilo que dizem certos senhores-pensadores destas questões:
a identidade se constrói no encontro (neste caso, escrito) com um outro. A
certo pensador destas problemáticas (Kwame Anthony Appiah de seu nome), “o fato
de que as respostas de outras pessoas desempenham um papel crucial na
configuração da ideia que cada um tem de si mesmo resulta incontornável
no marco das relações humanas normais.” [APPIAH, 2007, p. 163]
Eu não tinha
ciência, ou melhor, eu não tinha experiências nestas questões. Nunca antes me
havia visto nos olhos alheios. Nunca antes havia lido o dizer de alguém sobre o
que eu era ou não era em minhas escrevências. O que então havia escrito era meu
e somente. Ainda que aí estivesse o vasto mundo, o que escrevia (pensava eu)
era ainda cria só de minha solidão criadora. Foram os alheios olhos leitores (cavalos
madrugadores, cascos pisoteando o intocado orvalho das pradarias das manhãs)
que me chamaram para o sol do dia deste vasto mundo do viver, onde somos e
vamos sendo à medida desses encontros e partilhas.
II. OS
ALHEIOS OLHOS
Num texto
poético, pungente, publicado em 26 de junho de 2012, no Caderno 3 do jornal Diário do Nordeste, de Fortaleza, o professor e
escritor Batista de Lima foi o responsável por me fazer atentar para essas
questões, para essas implicações entre os lugares e suas esperáveis identidades. Ou,
ainda mais propriamente dizendo: para as implicações entre minha escrita e meu lugar.
A dado ponto
de seu texto, intitulado Coisas
milagradas, o professor
Batista de Lima afirma: “diferente dos outros poetas de Limoeiro, Dércio não é
telúrico”. Ao ler isto, de imediato, algo em mim se inquietou. Mas prossegui na
leitura. Para logo a seguir ouvir das linhas do professor Batista de Lima
(atento leitor que é) que, em minha escrita poética, “o rio Jaguaribe, que
banha a cidade, não aparece, as carnaubeiras, completando a paisagem, não
falam.” [LIMA, 2012] Inquieto ante o que lia, concluí a leitura, todavia. Só ao
fim, páginas pousadas ao lado, me pus a considerar as afirmações lidas. (Os
cascos dos cavalos – crias do mundo vasto – haviam pisoteado o intocado
orvalho de minha solidão criadora. Suas pisadas – ato belo e violento – já não
podiam ser apagadas.)
Mas
considerava ainda apenas para mim, na solidão do meu pensamento. E, de fato:
nas linhas de minha escrita não correm o Jaguaribe, não falam, sequer balouçam,
os carnaubais, essa paisagem tão próxima – e digo isto de modo literal,
objetivo: diante de minha janela, enquanto escrevo estas linhas nessa manhã de
domingo, os carnaubais seguem suas fainas, seu dançado ao vento, juntamente com
os estrangeiros pés de nim [Azadirachta indica A. Jus], já tão nativos em nossas paisagens banhadas pelo
(seco, ao menos aqui) Jaguaribe. Ao confirmar isto, quase que (ou fui?) tomado
por um sentimento de desnatura: por que estas coisas da terra não
estavam em minha escrita?, por que não as dei fala?
(As pisaduras dos cascos dos cavalos cravavam suas memórias.)
Fiquei
ruminando essas inquietações; buscava uma compreensão, um entendimento para
elas. Tudo isto no foro íntimo das paredes da minha cabeça.
Até que,
novamente, elas me foram colocadas pela escrita alheia. Desta feita, pelo texto
do escritor e jornalista, vivente de Brasília, Lourenço Cazarré. O texto,
intitulado Painel do conto
brasileiro, me fora enviado
pelo amigo e companheiro das venturas e desventuras da profissão bancária,
Ronaldo Cagiano. Estava numa coluna do nº 148 do jornal Rascunho, de Curitiba, de agosto de 2012. Em
seu texto, Cazarré faz um exame de obras inscritas no Prêmio Brasília de
Literatura, no gênero conto. Depois de discorrer sobre os números obtidos ao
final de seu levantamento (por Estados, por editora, etc.), Cazarré finda por
destacar “oito autores jovens, ou não-badalados, cujo trabalho considerou de
qualidade”. Dentre esses autores, está este que vos escreve, com os contos de Como um cão que sonha a noite só. Senti-me honrado. (Quem não se
sentiria?, ainda mais num meio – falo do literário – em que os “jovens, ou
não-badalados” não costumam merecer quaisquer considerações, ainda mais se
viventes-habitadores distante das grandes metrópoles.)
Desta feita,
a inquietação que o texto lido (do senhor Cazarré) trouxe-me se instalou em mim
a partir dos seguintes dizeres:
“É difícil enquadrar a arte narrativa de Dércio Braúna nas grandes linhas do conto atual brasileiro. Digamos que as histórias que ele conta não são nem claramente intimistas nem voltadas para o real. Não contribuem, como apreciariam certos críticos, nem para a psicologia nem para a sociologia. O que se pode dizer com certeza é que Braúna tem uma dicção poética particularíssima, lusitana mesmo.” [CAZARRÉ, 2012]
Saído da
leitura do texto de Cazarré, o sentimento/inquietação que me ficou (para além
do lisonjeio da menção feita, reconheço vez outra) foi o de que, mais uma vez,
eu me “desidentitava”, saía dos quadros da identidade
esperada. Num tempo em que tanto se cobram as vinculações, os laços de
pertença, vez mais (e isto era alheia gente a dizer), eu seguia por outras
veredas, sozinhando-me no caminhar. Nem o trato caótico (sociológico) do mundo
urbano, nem as neuroses (psicológicas) dominantes no panorama do conto
brasileiro: eu não me enquadrava nas linhas mestras – apreciadas por certos
críticos. (Os cascos dos cavalos seguiam sua pisadura. Por seu ato – belo e
violento –, iam misturando o brando orvalho ao sujo da terra, macerada aos
destroçados corpos das pequenas ervas.)
E estas
inquietações não me abandonaram, continuei (continuo) a ruminá-las, estão ainda
cá comigo. Foi a partir delas, desse exercício ruminador, que então me
ocorreram algumas questões, que aqui as venho colocar. Poderia fazê-lo a partir
da escrita doutros, desse modo não incorrendo na imodéstia de falar de algo de
minha pertença. Seria, decerto, tão mais cômodo. Mas se foi justo esse ver-se
ao espelho dos olhos alheios que me trouxe (não sem muita e ruminada hesitação)
até este ato de escrita, por que não assumir as responsabilidades de acatar
essa opção? Se foi justo esse lampejo, essa iluminação brusca e inesperada
(ver-me visto nos olhos de outrem) que me despertou o incômodo, a inquietação
pensadora, por que deixá-la trancafiada na solidão divina das paredes da
cabeça? Isto ponderado, havia todavia, uma benesse (um pensamento que só me
chegou depois): falar de uma pertença sua (minha escrita) implica não arcar com
possíveis discordâncias, contrariedades do outrem falado. E, embora partindo de
dizeres sobre uma minha pertença (minha escrita), intentarei fazer disto, nesta
reflexão, um ponto de partida (a que não deixo de voltar, é certo), não um fim
em si.
III. CHÃO E
ORBE
A primeira
das questões (na verdade a grande e maior questão) a colocar, suscitadas a
partir dos dizeres antes apontados, tem haver com as relações que se
estabelecem, ou que se entende haver, entre lugar e escrita.
Uma questão
de identidade, é certo: o
mais comum, ou o mais esperável, é que os lugares conformem (ou colaborem a
conformar) identidade às escritas. Daí que a diferença em relação a esse pressuposto chame a
atenção. Quando em seu texto o professor Batista de Lima menciona que
“diferente dos outros poetas de Limoeiro, Dércio não é telúrico”, entendemos
haver um rosto possível, perceptível, identificável, à poesia escrita por
limoeirenses. Uma identidade
telúrica, uma escrita ligada às coisas da terra, a seus elementos tornados
símbolos desse laço (como o rio Jaguaribe e os carnaubais da paisagem
limoeirense).
A
conformação dessas identidades seria um problema? Não necessariamente. Seria
(é), certamente, uma questão cujo debate poderia (pode) colaborar no
estabelecimento de uma reflexão sobre o fazer literário em nosso lugar, cabendo-nos, diante dessa questão,
a necessária interrogação em relação às identidades e tradições que encontramos
estabelecidas nos meios em que buscamos inserção. Bem se sabe – pois que há
muito se diz e se escreve – que a tradição não sobrevive sem os embates com o que
lhe atravessa.
Seria (é) um
problema na medida em que o canto às coisas da terra se constitua de modo
estreito e excludente; na medida em que constitua símbolos acabados, fechados,
que delimite os modos e formas de dizer sobre o lugar; na medida em que opere segundo uma
lógica binária (ou/ou) em vez de uma lógica agregadora (e/e).
É preciso
sempre fugir à tentação de tomar os lugares como essências. Não há problema
algum em se ser telúrico, o há quando uma exigência se cola aos contornos de um
lugar: ou és telúrico ou não pertencerás a este lugar. O
que importa (e nos enriquece) é que cada lugar possa ser pátria de todas as
possibilidades de escrita: satírica, realista, surrealista, experimental, ...,
telúrica.
E não deixa
de ser absolutamente significativo que telúrico, segundo o saber dicionarístico,
além de se referir ao solo, ao chão, refere-se também ao orbe terrestre
(teluriano); ou seja, em sua poesia nominadora, o termo vai do chão ao orbe, do
terreal ao etéreo. Nada mais bonito que ser carregado de uma capacidade assim.
II. AS
LINHAS QUE NOS TRAÇAM
Outra
questão (siamesa à anterior) a apontar, a temos se tomamos o texto, antes
referido e citado, do jornalista Lourenço Cazarré, no ponto em que nos diz ser “difícil
enquadrar a arte narrativa de Dércio Braúna nas grandes linhas do conto atual
brasileiro”. A questão diz respeito à existência dessas “grandes linhas”.
Estas seriam
(são) um problema? Não necessariamente. Seriam (são) na medida em que possam
excluir o diverso, o não enquadrável de apreciação pelo simples fato da diferença, do desvio que realiza. Algo a que
o texto de Cazarré aponta ao dizer que “as histórias que ele [Dércio] conta não
são nem claramente intimistas nem voltadas para o real. Não contribuem, como apreciariam certos críticos,
nem para a psicologia nem para a sociologia” [destaque meu].
“Como
apreciariam certos críticos” coloca-nos a questão que referi sobre o perigo da diferença, do desvio em relação às “grandes
linhas” do estabelecido: ao se fazer o caminho desviante corre-se o risco do
olvido, do silenciamento por parte daqueles que, ao “apreciarem” dadas coisas,
relegam outras tantas. “Como apreciariam certos críticos” coloca-nos de
manifesto a constatação de que os enquadramentos
interpretativos não apenas
dizem sobre os objetos que tomam em consideração, mas os constroem à medida que
dizem, que falam sobre. “As práticas artísticas”, diz-nos um certo senhor
estudioso do sensível e suas partilhas (Jacques Rancière de seu nome) com o
qual partilho o seu pensar, “são ‘maneiras de fazer’ que intervêm na
distribuição geral das maneiras de fazer e nas relações com maneiras de ser e
formas de visibilidade.” [RANCIÈRE, 2009, p. 17]
Mais uma
vez, vemo-nos diante da problemática da exclusão que as “grandes linhas” podem
operar. O haver “grandes linhas” (temáticas) no fazer literário não é, em si,
um problema. O é na medida em que essas “grandes linhas” se configurem de modo
predatório, impedindo e devorando a possibilidade de existência e convivência
com outras linhas não tão grandes, não tão fortes ou eloquentes, mas que
representem outros caminhos, que por sua vez levem a outras paisagens de
contemplação sobre o existir. Afinal, as paisagens, há quem o diga, é, antes de
mais, construto do olhar, fabrico/artefato da sensibilidade do olhador. Nesse
sentido, as fronteiras também não deixam de o ser.
Se as
“grandes linhas” se constituem em fronteiras vigiadas, armadas até aos dentes,
se perde sua capacidade porosa (toda fronteira é lugar de passagem), então sim
elas se tornam um problema, uma decretação de morte à capacidade humana de
troca, de permuta, de mestiçamento (falo de almas, imaginários). Se se
constituem enquanto lugar de passagem e de contaminação recíproca (falo de
almas, imaginários), então as “grandes linhas” se tornam casas-grandes abertas
de par em par, todas as portas e janelas, para quem queira por aí passar,
podendo seguir ou ficar, sem amarras, sem grilhões aos pés. “Grandes linhas”
fechadas são prisões; “grandes linhas” abertas são paisagens abertas ao mundo.
III. ESCREVENDO
(E RASURANDO) IDENTIDADES
E é certo
que estas são questões muito maiores, de muitas mais implicações no campo
literário. É também certo que no espaço de uma reflexão breve como esta –
partida de algumas inquietações muito particulares, pessoais – não é possível
adentrar a essas questões maiores com a profundidade que suscitam. Permito-me
apenas, para dar a ver isto que digo, alargar brevemente (mas ainda dentro da
geografia dos meus afetos) o horizonte do que aqui venho propondo.
Esse alargar
de horizonte tem haver com uma temática que me é cara (a geografia do meu afeto
que digo), tanto que a ela me tenho dedicado já há alguns anos: as questões
pós-coloniais e suas implicações na apreciação das literaturas africanas. Esse
é um campo em que, inegavelmente, deparamos (e, por tal, carecemos de reflexão
a respeito) com a problemática da relação entre lugar e escrita,
com a identidade esperável entre os dois termos, bem como com o que caberia (ou
deveria caber) nas “grandes linhas” que delimitam o que é, deva ou deve ser a literatura africana.
Num trabalho
em que se dedica a refletir sobre os “comportamentos interpretativos”, sobre os
pressupostos teóricos que embasam a apreciação das literaturas pós-coloniais,
pelos quais essas literaturas são lidas, via de regra, como “alegorias
nacionais”, María José Vega, catedrática da Universidade Autônoma de Barcelona, entende ser “a crítica que propõe ler e acaba
lendo” as obras literárias desses espaços (pós-coloniais) “como se, efetivamente, fossem alegorias
nacionais”, impondo-se às literaturas desses espaços o fardo de serem, senão, a
“expressão da identidade nacional” [VEGA, 2003]. Ou seja: conforma-se todo um
fazer literário (diverso, múltiplo) a um engessado arcabouço teórico do qual
não se pode (ou não se deve) fugir; fazê-lo seria perder identidade, e,
consequentemente, tornar-se invisível aos olhos de certa crítica.
Uma outra
problemática leitora colocada em relação aos textos das literaturas de África
nos é apontada por Anita Martins Rodrigues de Moraes. Diz respeito à
“problemática da inscrição (ou recriação) da oralidade na escrita”, algo que
seria, segundo certas interpretações, uma qualidade literária “especificamente
africana”. A problemática desta percepção é que ela reatualiza determinadas
dicotomias, pelas quais a escrita, uma criação e propriedade humana, torna-se
índice de afastamento de uma suposta africanidade. A questão-problema a ser refletida
é:
“na medida em que abordar os textos literários africanos a partir da presença de aspectos da oralidade confunde-se com destacar qualidades especificamente africanas destes textos, estamos diante de uma tese que tem funções de cunho identitário, não apenas interpretativo.” [MORAES, 2009, p. 93-94]
Ou seja,
trata-se, em última análise, de um apriori, um “inconsicente teórico” na
proposição de Anita M. R. Moraes, castrador de todo pensamento fecundo e aberto
que as literaturas produzidas em África podem propiciar, e que “mesmo não sendo
evidenciados – ou justamente quando não o são, quando não merecem apreciação
crítica –, arriscam ser ‘carregados’ pelas análises literárias.” [MORAES, 2009,
p. 146]
E eis aí o
maior perigo. Assim procedendo, as análises literárias, “sucedendo uma ciência
que se atribuía o poder de dizer o que o outro é, teríamos uma ciência
destinada a dizer ao outro que ele não é”: não
és autenticamente africano, pois não tens as marcas do que é autenticamente
africano. É nessa perspectiva
que cabe perguntarmo-nos, como o faz Moraes: “Afinal, que África nós,
estudiosos, buscamos encontrar nos textos literários africanos?” [MORAES, 2009,
p. 147] Uma pergunta que nos leva ao questionamento dos pressupostos dos quais
partimos. O que é dizer: o problema não está nos textos literários africanos
(se são ou não autenticamente africanos), mas nas crenças que sustentam o olhar
e as perguntas que lançamos a eles.
E esta é uma
questão que não tem passado ilesa aos criadores literários de África.
Perguntam-se (perguntam-nos) eles, já há tempos, sobre essa limitadora visão
sobre África. É o que o faz, por exemplo, o moçambicano Mia Couto. Para ele,
“Essa visão restrita e restritiva do que é genuíno é, possivelmente, uma das principais causas para explicar a desconfiança com que é olhada a literatura produzida em África. A literatura está do lado da modernidade. E nós perdemos ‘identidade’ se atravessamos a fronteira do tradicional [...].” [COUTO, 2005, p. 60]
“Exige-se a um escritor africano aquilo que não se exige a um escritor europeu ou americano. Exigem-se provas de autenticidade. Pergunta-se até que ponto ele é etnicamente genuíno. Ninguém questiona quanto José Saramago representa a cultura de raiz lusitana. É irrelevante saber se James Joyce corresponde ao padrão cultural desta ou daquela etnia europeia. Por que razão os autores africanos devem exibir tais passaportes culturais?” [COUTO, 2005, p. 62-63]
A resposta a
essa indagação crucial, para Mia, reside em que “se continua a pensar a
produção destes africanos como algo do domínio antropológico ou etnográfico. O
que eles estão produzindo não é literatura mas uma transgressão ao que é tido
como tradicionalmente africano.” [COUTO,
2005, p. 63] Para Mia Couto, “é preciso sair dessa armadilha”.
Aceitar seus ditames é sucumbir ao retrato limitador e falso das molduras
pré-concebidas. [COUTO, 2005, p. 61]
E como
disse, essa é uma discussão que já há tempos se coloca aos escritores africanos,
exigindo suas falas e empenhamento. Sobretudo considerando-se o fato de que por
muito tempo as escritas sobre África a disseram como um vazio. Um vazio cujo
símbolo literário mais conhecido talvez seja O
coração das trevas, de Joseph
Conrad. Não por acaso um dos mais eminentes desmistificadores dessa ideia, o
escritor nigeriano Chinua Achebe, num seu texto sobre literatura africana,
contraponha o vazio de Conrad à presença humanizadora criada pela escrita do
senegalês Cheikh Hamidou Kane em seu “poderoso romance” Aventura ambígua. Para Achebe, “Conrad retrata um
vazio; Hamidou Kane celebra uma presença humana e uma luta heróica”. Foi lendo
as escritas sobre África que Achebe percebeu “que as histórias nem sempre são
inocentes” [ACHEBE, 2012, p. 120-121]. Foi escrevendo suas próprias histórias
que Achebe contribuiu para uma percepção outra: a de que “os africanos não são
seres estranhos com nomes impronunciáveis e uma mente impenetrável.” [ACHEBE,
2009, p. 128] Que, em suma, “a África não é uma ficção.” [ACHEBE, 2009, p. 158]
Parte da imensa irmandade humana, África (seus filhos criadores e imagineiros),
ao ficcionarem, não carecem de pedir quaisquer passaportes de identidade. Tudo
o que criarem será ficção autenticamente humana. E é assim que devem ser lidas.
IV.
CONFISSÕES DERRADEIRAS
Mas, como
antes dito, essa menção (brevíssima, é certo) a outro horizonte tem apenas por
intento fazer ver o quanto essas relações entre lugares e escritas, essas questões de
formações de identidade, esses vínculos entre crítica e criação literária são
complexos. Algo a que, para uma reflexão atenta e cuidada, implicaria muitas
mais linhas (páginas e mais páginas) de análises e estudos.
O que aqui
deixei escrito, quiçá, possa se dizer como uma confissão. Esta talvez seja a
melhor palavra: uma confissão. Nascida da inquietação que um dizer, um olhar
alheio sobre o que escrevi suscitou em meu pacífico, quieto (quase diria
monástico) fazer escriturístico, que até então não havia carecido de se olhar,
de se ver visto noutros olhos.
A findar
essas linhas, não resta senão escriturar o agradecer sincero àqueles –
professor Batista de Lima e jornalista Lourenço Cazarré – que, em seus textos
(ainda que não sendo esse seus propósitos, claro fique), propiciaram esse
gesto. Que não se acaba aqui; prosseguirá em minhas ruminações, em minhas
escrevências.
(Pois o
idílico orvalho da manhã, depois de macerado ao sujo da terra e ao dilacerado
corpo das ervas do chão, não mais se limpa. A poética pisadura dos cascos dos
cavalos abriram o dia. E o dia, sob sua arquitetura de sol, é habitação
inquieta.)
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REFERÊNCIAS
ACHEBE,
Chinua. A educação de uma
criança sob o Protetorado Britânico. Trad.
Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
APPIAH,
Kwame Anthony. Las exigencias de la identidade. In: ___. La ética de la identidad. Trad. Lilia Mosconi. Buenos Aires:
Katz, 2007, pp. 111-178.
CAZARRÉ,
Lourenço. Painel do conto brasileiro. Rascunho, nº 148, Curitiba, ago. 2012.
Disponível em: <http://rascunho.gazetadopovo.com.br/painel-do-conto-brasileiro/>.
Acesso em: 17 abr. 2013.
COUTO, Mia.
Que África escreve o escritor africano. In: ___. Pensatempos: textos de opinião. Lisboa: Caminho, 2005, pp. 59-63.
LIMA,
Batista de. Coisas milagradas. Diário
do Nordeste, Caderno 3,
Fortaleza, 26 jun. 2012. Disponível em: <http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1153010&coluna=1>.
Acesso em: 08 fev. 2013.
MORAES,
Anita Martins Rodrigues. O
inconsciente teórico: investigando estratégias interpretativas de Terra
Sonâmbula, de Mia Couto. São
Paulo: Annablume: Fapesp, 2009.
RANCIÈRE,
Jacques. A partilha do
sensível: estética e política. 2
ed. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009.
VEGA, María
José. Imperios de papel:
introdución a la critica postcolonial. Barcelona:
Critica, 2003 (col. Letras de humanidad).
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DÉRCIO BRAÚNA [1979], escrevente de coisas sentintes, é filho das terras cearenses de Limoeiro do Norte, cria de um pequeno lugar chamado Córrego de Areia, onde mãos amanham barro, cultivam o agridoce e espinhoso sumo para sustendo de suas necessidades, lavram a terra e a vida. Leitor tardio, é ainda faminto desse ato de fazer conversar pensamentos, imaginações. Apaixonou-se, já há tempo, por outras águas e terras, por outros olhares sobre o viver, por outras "imaginografias" (africanas, moçambicanas), sobre as quais tem andado a debruçar-se. Deu escritura a sentires e pensares: [poesia] O pensador do jardim dos ossos (Expressão Gráfica, 2005), A selvagem língua do coração das coisas (Realce editora, 2006), Metal sem húmus (7Letras, 2008), A ARIDEZ LAVRADA PELA CARNE DISTO (Confraria do Vento, 2015); [contos] Como um cão que sonha a noite só (7Letras, 2010); [história] Uma nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto, Nyumba-Kaya - Mia Couto e a delicada escrevência da Nação Moçambicana (Alameda Editorial, 2014). Consumido por sua paixão, segue remoendo na reflexão os fios que cruzam, os nós que emaranham a literatura e a história, sobretudo nos ditos tempos e espaços pós-coloniais. Segue também escrevinhando, espiando seu tempo, fabricando a ordinária e necessária vida que temos. Dos tantos dizeres que hão sido ditos, gosta de partilhar estes dois: 1) "A escrita não pode esquecer a infelicidade de onde vem a sua necessidade", este de um pensador francês (Michel de Certeau de seu nome); 2) "O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer", este duma camponesa portuguesa analfabeta (Josefa Caixinha de seu nome, avó de um senhor escrevente, de nome José Saramago). Quiçá estes gostos que tem ajudem a compreender porque entenda que escrever é desassosegar. Seu website é este [http://www.derciobrauna.com/] e seu perfil no Facebook é este [https://pt-br.facebook.com/kayarevistaliteraria].