Obra sin nombre - Enrique López Pacheco |
I.
Nem o amor, nem deus
qualquer:
nada põe reparo nessa
vida nossa
debaixo do castigado
azul
dessa tarde de maio.
Há estas casas,
suas almas que são suas
mobílias
(os retratos encardidos,
os pratos sujos na pia,
as gentes fiando sonhos
em pedaços de papel sem valia);
e nestas casas
nem mesmo os olhos
empoeirados dos santos
são capazes de,
do alto das paredes de suas
moradas,
conceder a este dia,
a seus cansados povoadores,
o bem que seus
envelhecidos olhos de tinta,
um dia,
prometeram.
Nada repara a ausência deste
paraíso.
II.
E assim vamos,
tarde de maio a dentro
(seu sol se abrandando,
sua poeira tangendo a memória),
com nossas parcas
relíquias
(cadernos sujos a caligrafia de jurado
amor;
vozes antigas, serenas,
vindas ao mundo de dentro de velhas
maquinarias;
evangelhas verdades,
atravessadas por desertos e mares, por
eras e eras;
as cifras que nos – a uns – acalantam;
os desejos que nos sobrevivem;
o futuro que fiamos
não obstante as doídas mãos de agora;
etc.;
etc.)
– nossas tão mínimas
relíquias!
e assim vamos,
a talvez as pedir
(a nossas tristes relíquias)
que assim sejam:
coisas votadas de um querer.
Assim como fazem aqueles
primitivos
“que carregam por toda
parte o maxilar inferior de seus mortos”* –
suas tão parcas
mínimas
relíquias.
[* CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, Claro enigma, p. 57]
*Leia também "ARGILA PROVISÓRIA", A CONTUNDÊNCIA SUMÁRIA DAS COISAS e UM NOME PARA ESTA COISA QUE NÃO HÁ
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Dércio Braúna [editor de Kaya] - é poeta, contista, historiador; autor
de O pensador do jardim
dos ossos, A
selvagem língua do coração das coisas, Metal sem húmus, Como um cão que sonha a noite só, Uma nação entre dois mundos:
questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto