A Sul. O Sombreiro - Pepetela |
Um homem senta-se — ante a tela de seu computador ou ante o branco de uma página —, e principia a escrever um romance. Sua primeira linha é para dizer, com todas as letras, que um certo senhor, que teve vida no século XVII, nobre e conquistador, "é um filho da puta".
Dito
homem chama-se Manuel Cerveira Pereira, a quem uma simples pesquisa no universo
do deus Gugol (passe o português) irá qualificá-lo como
um administrador colonial portugues que exerceu o cargo de Capitão-General na Capitania-Geral do Reino de Angola, por duas vezes, a primeira entre 1603 e 1606, tendo sido antecedido por João Rodrigues Coutinho e sucedido por Manuel Pereira Forjaz, o segundo mandato foi entre 1615 e 1617 tendo sido antecedido por Bento Banha Cardoso e sucedido por Luis Mendes de Vasconcelos [in: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Cerveira_Pereira>]
A chula
expressão é saída da boca de Simão de Oliveira, vigário de Benguela ao tempo
(princípio do século XVII), aí posta pelo homem que antes se sentara a escrever
seu romance. Arthur Carlos Maurício Pestana dos Santos, ou simplesmente
Pepetela, é o iconoclasta desses "vultos da história". Estão eles (o
conquistador Manuel Cerveira Pereira, o vigário Simão de Oliveira, e tantos
outros, como o viajante-explorador Andrew Battell, o rei Imbe Kalandula, etc.)
nas linhas de A sul. O sombreiro, obra
na qual Pepetela vora registros da história com a mesma sem-cerimônia com que
joga à cara do "conquistador de Benguela" sua filhadaputisse.
Mais que
isso, Pepetela escalpela a sacralidade que por vezes (muitas vezes) os
registros históricos são lidos. Em sua faina criadora, despe a fina flor da
pomposidade da letra lusitana dos textos para os mostrar por outras miradas.
Senão vejamos, caro possível leitor:
Manuel Cerveira Pereira resolveu desembarcar [na Baía da Torre, Baía das Vacas ou de Santo António] e fundar a cidade, para ser a capital do que ele tinha pomposamente chamado o "Reino de Benguela". São suas as entusiásticas palavras para o rei, justificando a escolha do sítio "por não achar melhor porto, terra de mais salutíferos ares, fértil e abundante do mantimento da terra, como na abundância de muito e diverso peixe que há nesta baía, estando vizinho de dois rios que correm de excelente água." [p. 227]
As
palavras em destaque são de carta de Manuel Cerveira Pereira ao rei Filipe II
de Espanha, de 06 de março de 1918, vorada por Pepetela do sexto volume da obra
Monumenta Missionária Africana, cuja
sua leitura logo a seguir ele nos participa, mostrando-nos o escalpelo de seu
ato leitor:
O espantoso nesta carta e em muitos outros relatórios de igual proveniência é o fato de o Cerveira sempre referir o clima como argumento decisivo na escolha [...]. O governador chegou em maio de 1617, tendo desembarcado no mesmo 17, altura do ano mais fresca e sem chuva, mas com aqueles restos de humidade que fazem o capim estar ainda verdinho, dando a ideia, com muito boa vontade, de prados da Europa. Compreende-se o erro. Mas designar ares salutíferos os respirados no meio de pântanos já é mais difícil de aceitar. E que os dois rios, Cavaco ou Maribombo e Corinje, corram com excelente água é a mais deslavada das mentiras, pois só tem água nos últimos séculos (e os arqueólogos geológicos poderiam apontar para milénios, para tanto não me arriscando eu) durante três ou quatro dias por ano, numa enxurrada de água barrenta depressa absorvida pela secura dos leitos. Quase sempre, para beber é preciso cavar cacimbas e rezar. Terá sido assim desde os primeiros vestígios, não havendo razão para alterações, pois se desconhece a existência de falhas geológicas, vulcões, furações ou outros fenómenos modificando bruscamente o clima ou roubando a água de rios. [p. 227]
Mais à
diante, à guisa de remate de sua iclonocastia histórica, escreve: "tudo
nomes demasiados pomposos [fortaleza, cidade, forte, etc.] para a mirrada
realidade existente" [p. 302].
Nas mais
de trezentas páginas do romance, esse ato herético é reiterado. Mais
documentação histórica é vorada, mais a imaginação-escalpelo do autor nos faz
ver o quão necessário se faz desreverenciar o passado, desnudar a sacralidade
das linhas (sobretudo linhas de uma escrita conquistadora) que, no caso de uma
terra como Angola, disseram o que ela era "autenticamente". Não
admira que o autor faça questão de se "meter" no emaranhado desses
fios que tecem a escrita da história:
Aproveito assim a ocasião para meter solenemente minha farpa afiada, sejamos condescendentes com os modos e hábitos dos europeus, para não parecermos copiar a falta de compreensão e mesmo desprezo que sempre mostraram pelos nossos costumes. [p. 15]
E "à
propósito de relevância", se iniciei este escrito com as primeiras linhas
de A sul. O sombreiro (sobre a
filhaputisse de Manuel Cerveira Pereira), findo-o com as últimas do romance,
ainda mais iconoclastas que as primeiras. E elas dizem justamente do gesto do
autor de, ao escrever uma ficção tomando por base documentação histórica,
principiando por dizer da vida de um conquistador (Manuel Cerveira Pereira) e,
depois, da busca pelos restos mortais de outro (Diogo Cão, primeiro português a
chegar às terras do que hoje é Angola, em 1482), findá-la passando ao largo
dessa busca, relegando ao esquecimento a possível ossada do explorador
lusitano:
À propósito de relevância, Diogo Cão, onde param as tuas ossadas? [p. 358]
"À
propósito de relevância", nada mais relevante que esse gesto irônico, que
esse riso à cara da história a fim de fazê-la ver (fazer-nos a nós vermos) as
outras tantas histórias que ficaram olvidadas pelo peso mofento de uma história única (monumental) que tantas
vezes se escreveu (escreve).
"À
propósito de relevância", que voremos o gesto dessa escrita.
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NOTA BIBLIOGRÁFICA
PEPETELA (Arthur Carlos Maurício Pestana dos Santos). A sul. O
sombreiro. Lisboa: Dom Quixote, 2011. [edição brasileira: São Paulo: Leya,
2012]
PEPETELA, nasceu em Benguela (Angola), em 1941. Licenciou-se
em Sociologia (em Argel, durante o exílio). Foi guerrilheiro do MPLA (Movimento
Para Libertação de Angola), tendo sido dirigente político e exercido cargos
governamentais após a independência, em 1975. Foi professor universitário na
Universidade Agostinho Neto (em Luanda) e atuou em organizações culturais, como
a União de Escritores Angolanos. Dentre outras distinções, recebeu em 1997 o
Prêmio Camões.
OBRAS DE PEPETELA
As
Aventuras de Ngunga [1972]
Muana Puó [1978]
A corda [1978 - Teatro]
Mayombe [1980]
A revolta
da casa dos ídolos [1980
- Teatro]
O Cão e os
Caluandas [1985]
Yaka [1985]
Lueji [1990]
Geração da
Utopia [1992]
O Desejo
de Kianda [1995]
Parábola
do Cágado Velho [1997]
A Gloriosa Família [1997]
Montanha
da Água Lilás [2000]
Jaime
Bunda, Agente Secreto [2001]
Jaime
Bunda e a Morte do Americano [2003]
Predadores
[2005]
O
Terrorista de Berkeley, Califórnia [2007]
O Quase
Fim do Mundo [2008]
Contos de
Morte [2008]
O Planalto
e a Estepe [2009]
Crónicas
com fundo de guerra [2011]
Crónicas
sem guerra [2011]
A sul. O
sombreiro [2011]
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Dércio Braúna [editor de Kaya] - é poeta, contista, historiador; autor de O pensador do jardim dos ossos, A selvagem língua do coração das coisas, Metal sem húmus, Como um cão que sonha a noite só, Uma nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto.
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Dércio Braúna [editor de Kaya] - é poeta, contista, historiador; autor de O pensador do jardim dos ossos, A selvagem língua do coração das coisas, Metal sem húmus, Como um cão que sonha a noite só, Uma nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto.