domingo, 7 de junho de 2015

DIÁRIO DE UM RETORNO AO PAÍS NATAL [Fragmentos] [Aimé Césaire]

Partir.
Como há homens-hienas e homens-panteras, eu seria um homem-judeu
um homem-cafre
um homem-hindu-de-Calcutá
um homem-de-Harlem-que-não-vota

35.
o homem-fome, o homem-insulto, o homem-tortura que se podia a qualquer momento agarrar, espancar, matar – perfeitamente matar – sem ter que prestar contas a ninguém sem ter que pedir desculpas a ninguém

39.
Partir. Meu coração estalava de generosidades enfáticas. Partir... eu voltaria liso e jovem a este país meu e diria a este país cujo limo entra na composição da minha carne: “Andei por muito tempo errante e volto para a hediondez desertada das vossas chagas”.

Eu voltaria a este país meu e lhe diria: “Abraçai-me sem temor... E se não sei senão falar, é por vós que falarei.”

E eu lhe diria ainda:

“Minha boca será a boca das desgraças que não têm boca, minha voz, a liberdade daquelas que se abatem no calabouço do desespero.”

E ao voltar diria a mim mesmo:

“E sobretudo meu corpo assim como minha alma, livrai-vos de cruzar os braços na atitude estéril do espectador, porque a vida não é um espetáculo, um mar de dores não é um proscênio e um homem que grita não é um urso que dança...”

173.
E está de pé a negrada

174.
a negrada arriada
inesperadamente de pé
de pé no porão
de pé nas cabines
de pé na ponte
de pé ao vento
de pé sob o sol
de pé no sangue
    de pé
            e
               livre
[...]




175.
      de pé
              e
                 livre

176.
e o navio lustral avança impávido sobre as águas desmoronadas
E apodreçam agora as marcas da nossa ignomínia!



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Referência dos textos: CÉSAIRE, Aimé. Diário de um retorno ao país natal. Trad. Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: Edusp, 2012.

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Aimé Césaire nasceu numa aldeia da Martinica [1913-2008 |Martinica]. Foi autor de um teatro histórico de sopro shakespeariano e de uma poesia que marcou profundamente escritores de muitas partes do mundo. Com seu Diário de um retorno ao país natal, texto ao mesmo tempo épico, lírico e dramático, inscrito numa intertextualidade extremamente complexa, funda, poeticamente, o movimento da Negritude, inspirador de toda uma nova literatura.



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